terça-feira, 30 de setembro de 2014

elixir



há 19 consultas conheço o Dr LC; sabemos pouco um do outro, mas o fundamental para conversas prolongadas, consultas fora do padrão 20 minutos do plano de saúde, papos sobre o que lhe brota. 
ele tem mais que o dobro da minha idade e é especialista não só na sua escolha médica. sabe muito da vida e dos comportamentos. gosto de ouvi-lo. 
dia desses me contou que escorregou no banheiro e se estabacou no chão. grande perigo em qualquer tempo, aos 84 nem se fala. falou da imprudência: "o telefone estava a tocar e eu saí desembestado para atender". justificou a imprudência: "a cabeça da gente pensa de um jeito e o corpo já não responde mais como antes".

por que será que para algumas coisas a experiência é transformadora e para outras não? 
vejo por aí senhoras, avós, passadas dos 65, a desfilar em minissaias que não ficariam bem nem aos 15. homens a pintar cabelo como se fossem Silvio Santos. cinquentões em discursos pseudo-comunistas que tinham certo sentido na adolescência. motoqueiros tardios usando calças justas que lhes apertam as partes e sobressaem a barriga. 

e eu. me olho no espelho e não acredito que o tempo passou tão depressa que nem percebi que não sou mais menina. muita coisa mudou dentro de mim, mas tem uma boa porção que continua na mesma. 
é difícil saber da contagem dos hormônios, da leitura do colesterol, dos ossos com aspecto de Suflair. é estranho me olhar no espelho e ver rugas e cabelos pálidos e mesmo assim enxergar dentro dos olhos a essência de sempre. é como se eu estivesse em outro corpo...
aprender envelhecer, se preparar para a morte, ser consciente da finitude deveriam ser assuntos obrigatórios nas rodas, nas escolas, nos meios. sem nenhum tipo de tabu (detesto essa palavra!) ou depressão, só tratados com a mesma naturalidade com que falamos da profissão, da infância, do filho, do futebol. 

talvez a vida fosse mais ampla, os sonhos mais possíveis e os problemas menores se a consciência do tempo e suas marcas estivessem para nós com a mesma simplicidade dos outros assuntos que nos compõem. 

de uma forma ou de outra, estamos todos a tentar enganar os ponteiros e a acreditar que temos ainda muito tempo. 

   

um milhão de carneirinhos

cara insônia,

venho por meio dessas mal traçadas linhas pedir que você vá embora. mui educadamente solicito sua retirada dessa cama, desse quarto, daquela sala e da outra, da cozinha, do quartinho. dessa casa. 

vá! você não é bem vinda aqui, não gosto como se comporta: esse silêncio de pedra, essas sombras na escuridão, essa invasão de pensamentos ruins. 

caminhe pelos fusos e faça companhia àqueles que agora precisam estar atentos e fortes para o expediente. ajude a entediada balconista búlgara que boceja sem ver viva alma entrar em sua lojinha. ou dê forças ao médico malaio que pestanejando dobra o plantão. ainda, empreste ânimo ao agricultor australiano que, enxada nas mãos, trata com alguma lombeira do pão de amanhã. 

certamente há bilhões no mundo que precisam muito estar acordados agora. dê uma olhada, vague pelo planeta, espie a humanidade. 
você será útil para tantos, não precisa ficar aqui a me acompanhar durante a noite. 

me cuido sozinha e melhor longe de você. 
veja, tenho cama agradavelmente perfumada, quarto quentinho, música suave e bem baixinha; tenho também uma dúzia de sonhos para sonhar, o corpo que pede descanso, os olhos que queimam; fiz minha parte pela melhoria do mundo, trabalhei, fui solidária, lavei a louça e varri a casa. me falta a merecida hora do descanso, do descaso.
acaba sendo muito mesquinho de sua parte querer insistir aqui, nessas conversas que sempre começam quando já é, e ainda não é, dia seguinte.

você bem sabe que posso, a qualquer momento, me levantar e te expulsar, né? basta a decisão de caminhar até a caixa de remédios. uma pílula e o tiro fatal em sua insistência. mas prefiro mil vezes que nossa despedida aconteça com calma, com beleza, com preguiça. quero que você se retire como quem sai de sessão de massagem: passos leves, tranquilidade nos músculos, relax total. 

reclamo pelo direito de me decidir pelas madrugadas, se as vivo ou me adormeço... preciso fazer isso sozinha, não aceito mais sua imposição. 

reúna tudo que é seu e se esqueça de mim! 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

entre bancários, automóveis, ruas e avenidas

moro em Curitiba. sempre morei. mas não me acostumo a algumas particularidades da terra. a chuva está na lista. acho que não tenho casa própria porque gastei todo recurso na compra de guarda-chuvas. melhor, se tivesse guardado a primeira sombrinha que tive e colocado num cofre a grana que gastei nas que vieram depois, teria dinheiro para apartamento no Leblon - e lá poderia deixar umbrela escondidinha num armário da área de serviço. 

saio a pé sem proteção, compro no caminho, volto pra casa sem proteção. não sei em que lugar no tempo e no espaço minha tenda particular é perdida. 

hoje, tratei de fazer diferente: galochas (sim, eu sei!), chapéu, capa. vesti todo arsenal e decidi ir de carro. o trânsito fica mais impossível que o normal em dias molhados, mesmo assim, resolvi ir de carro. para pequena distância entre o estacionamento e o destino, estava bem protegida.
quando saí da garagem, com a primeira gota o limpador de para-brisa escorregou, creeeec. o barulho e o rastro no vidro me levaram imediatamente a três pensamentos: primeiro, não importa a opção ao sair de casa, em dia de chuva sempre preciso comprar alguma coisa; segundo, trocar palhetas faz parte da chatérrima manutenção do carro; terceiro, o Rodrigo me prometeu de presente limpadores como os que ele tem em seu carro chique.

como sempre que estou no posto a abastecer (coisa que detesto e que também entra no quesito manutenção) os frentistas querem me vender um milhão de coisas, resolvi que esse seria meu primeiro destino. 
grande surpresa! há mais modelos de palheta que opções de galochas. não entendo desses pormenores e pedi para o rapaz eleger a melhor para o meu caso. veio ele com modelito em mãos "posso instalar essa?", "você acha que essa é a melhor?", "sim, claro.", "se esse carro fosse seu, você instalaria essa?". ele deu uma risadinha e voltou com outra. 

minha irmã sempre diz que eu sou meio boba na hora de fazer compras, que não presto atenção e me deixo levar por impulsividades e compaixões. 
saí do posto vitoriosa, com a certeza de ter acertado. 

estacionei. se estivesse chovendo o mesmo tanto aquela hora em São Paulo, todos os problemas de abastecimento estariam resolvidos. imediatamente, como sempre, brotou na minha frente um vendedor de guarda-chuva. não tive escolha, ele tratou rapidinho a questão: "25,00". repeti as frases que fiz para o frentista, afirmativamente ele respondeu sorrindo. comprei. 
na volta, não chovia mais e eu também não tinha mais guarda-chuva, ele me ofereceu outro, igual: 15,00. 

dois pensamentos: primeiro, na próxima chuva, precisarei fazer nova compra; segundo, acho que minha irmã tem razão! 

domingo, 28 de setembro de 2014

na rede

problemas com meu computador. 

há tempo ele não é mais o mesmo. mas temos um caso antigo, amor de muitas conexões, somos parceiros de dados e inventamos juntos um mundo só nosso. por isso insisti tanto. 
mas o desgaste é geral e não consigo mais chegar perto sem querer arremessá-lo na parede. pobre branquinho, tchau companheirinho.

enquanto o novo não chega, tenho me virado com outros aparelhos. mas não é tarefa fácil usar iPad ou iPhone para trabalhar. quando o lance é só difícil, supero; quando é impossível, tomo providências.
foi o que aconteceu hoje. para dar conta de umas questões fui à lan house. 
achei que esse tipo de lugar já nem existisse mais, tivesse virado um cometa duma época em que todo mundo queria, mas nem sempre podia, ter computador, internet, etc. hoje, como qualquer telefone proporciona muita coisa, não me parece um bom negócio ter casa assim. enfim, há lan house, há clientes, há desesperados como eu que precisam de máquina alheia.

puxei material da bolsa, coloquei os óculos, dei boa tarde ao aparelho, aprendi o básico de seu jeito e tratei do trampo. 

lá pelas tantas comecei a ter as distrações que me insistem. não conseguia parar de pensar em quantas pessoas já usaram aquela máquina, para quê usaram. será que cartas de amor foram respondidas em email emocionado? votos de casamento escritos naqueles mesmos teclados em que eu batucava o pão? 
o que mais há de ter passado por aquele túnel público dos sentimentos e emoções do mundo? brigas, traições, reconciliações, envio de currículo, compra de viagem, trabalho escolar, extrato bancário, combinação de pescaria, pesquisa para alugar casa, notícias para Guadalupe. 
tudo, tudo como o infinito, pode ter passado por ali. e agora eu estava a contribuir para os assuntos desse túnel que acaba guardando toda memória do mundo de um outro jeito. condutor de qualquer coisa.
fiquei encantada e meio desesperada com o número de informações e histórias e gentes que já passaram por ali, bem ali, onde eu também deixava a inscrição de minha vida. e vi homens quase feras a riscar caverna, me senti igual - quando aquele futuro lá longe chegar e pegarem as provas dessa vida, acharão, saberão achar, tudo que deixamos nos computadores das lan houses...

atordoada com tanta imagem, fui fazer perguntas à mocinha. há quanto tempo esse computador está aqui? quantas pessoas por dia o usam? qual é a idade média das pessoas que frequentam a lan? que tipo de acesso fazem? e mais uma meia dúzia de questões que comporiam o meu delírio. a primeira resposta me trouxe a realidade:
- esse computador é novo, chegou semana passada, porque o pessoal gosta muito de jogar, ele é ocupado quase só pra jogar, então a gente sempre troca os PCs. por que, tem algum problema? 

oh mundo! eu sonhando com incrível transferência e registro de assuntos, memórias, projetos, cotidianos... achando que aquela caixa também guardaria as preciosidades do nosso tempo, que era, filme detalhado, um condutor de informações para nossos companheiros de espécie para daqui uns mil anos. 
qual o que? 
é só instantânea do momento. 

voltei ao trabalho, sem distrações ou ilusões. sem ficção. 
a realidade: as lan houses existem, se sustentam e fazem investimentos constantes em suas máquinas... 


sábado, 27 de setembro de 2014

canoa

o vento que vem do leste
o leste que nasce em mim
rodopio de tempestade
que acaba sem ter fim
nas manhãs me faço em sol
toco músicas que me acreditam
sopro nuvens, lanço raios
e me dispo no que liberta
conheço as tardes de saliva
que me jogam de novo ao mar
puxam e me largam 
na promessa de voltar


cartas para mim

antigamente, quando a vida ainda seguia a marcha das ilusões, tinha dois medos: ficar sozinha e não escrever. 

o primeiro temor, nasceu quando nasci. de tanto provar da solidão e não encontrar sentido em fazer laços indissolúveis, a voz de fora passou a proclamar que vida desacompanhada era mesmo o estado natural de todo mundo, todo mundo do meu mundo. afirmei que a caminhada depende de cada um, ainda que acompanhado. mas num determinado momento, a voz de dentro passou a temer a resolução. o sopro de que eu poderia mudar de ideia, depois de minutos sem fim da mesma afirmação, me aterrorizava. como seria fazer a troca de ideal? e se eu chegasse à outra conclusão após tantas certezas? e se o meu hino, primeiro e oficial, afastasse aqueles que poderiam entrelaçar seus dedos aos meus para a marcha? 
dúvida nem sempre é boa conselheira e as questões me jogaram pro medo. 

quando aprendi o alfabeto e a maravilha que se podia fazer juntando letras, criando sílabas, formando palavras não queria mais parar. e fui descobrindo os prazeres da linguagem na leitura e depois na escrita. me calei para desejos, negativas, vontades, pedidos e deixei que eles corressem no papel. rabiscava tudo que sentia e queria, de bilhetinhos a cartas, de parede a cadernos, de diários a grifos e comentários em livros. um dia, alguém me disse que eu deveria escrever de verdade, a sério. foi o suficiente para o pânico. e se ao tentar escrever eu não conseguisse mais? e se meu texto não fosse claro? e se me faltassem palavras, pior, ideias?
mesmo processo: as incertezas do caminho me levaram ao medo. 

hoje, com mais dúvidas que certezas, aprendi que são as perguntas as verdadeiras amigas da minha trajetória. elas não me brecam os movimentos, ao contrário, impulsionam o pensamento e a ação pela curiosidade de ver mistério desvendado. seja ele qual for. há certa diversão em minhas questões existenciais, me olho no espelho e rio das ridicularias dos pensamentos. 
fracasso? vexame? vergonha? nem sou tão importante assim para acumular qualquer coisa desse tipo. reconheço que gosto do sucesso e me esforço por ele, mas deixei de ser sua escrava. mais vale a vida vivida que as horas de tensão que levam à desistência crua.

não temo, não tenho o que temer. aprendi definitivamente, até a próxima crise: sim, somos, sou sozinha; não, jamais escreverei de verdade. 

por isso tenho o blog, exercício solitário da tentativa de comunicar. 

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

sexy Iemanjá

não me importa que a chuva caia lá fora e que eu precise de capa, galochas e cachecol para enfrentar o mundo. o calendário avisa que num instantinho será verão.
a notícia me anima. 

não posso mais ficar espichada em esteira lagarteando sob o sol. passei da idade e das condições de deixar as pernas à mostra. em poucos lugares vivo sem ar condicionado. não suporto o coletivo que sai da hibernação. 
mesmo assim, a contagem regressiva para o verão me coloca em estado especial.

o que mais me vira o juízo é pensar em dar mergulho na praia, sentir o sal na boca, as ondas lambendo minhas pernas... 
sinto saudade do mar, como se fosse gente. mais. meu desejo pelo mar é coisa quase erótica, vontade na carne, na pele, nos pelos. há fagulhas à espera de incêndio. 

não moro na praia. deveria, mas não moro. meu endereço torna esse encontro ainda mais especial: não corro risco de que a trivialidade de ter a paisagem e a possibilidade sempre disponíveis se transforme em coisa comum e fora das anotações. 
mas sou privada de poder numa quinta-feira qualquer dar um mergulho antes do expediente ou passear num fim de tarde sentindo a maresia me embaraçar os cabelos. 

de um jeito ou de outro, a boa nova é que há translação e é nela que confio para que a época chegue. 


terça-feira, 23 de setembro de 2014

書道



Antigamente tinha letra bonita. Caligrafia calma, desenhada, pintada na vontade de estar perto do papel. Até minha assinatura era mais caprichada.
Os diários dos anos que ficaram nos cadernos são documentos que denunciam uma vontade de fazer registro com decência, mesmo quando as notas não eram tão agradáveis.

A máquina de escrever não foi uma sensação pra mim. Fiz o curso obrigatório, aprendi sequência das letras, sabia usar corretivo. Mas, sem habilidade, não gostava. Acho que por conta do barulho, concluía instrumento sério demais para minhas palavras e ideias. As vezes em que datilografei e saquei a folha e reli, lembro bem, não me identificava, simplesmente não conseguia ver que o que estava ali era registro meu. Formas estranhas para o que rondava na minha cabeça.

Nos primeiros anos de pilotagem de computador, jeca, escrevia tudo primeiro no papel e depois digitava. O rascunho era bonitinho, mas abandonei a perda de tempo e tratei da comunicação direto no batuque.

A parafernália não me tirou os papeis. A imensa coleção de cadernos, folhas de cartas, envelopes, cadernetas, bloquinhos, canetas, lápis coloridos continuou a ser comprada e usada, mas de forma mais escassa. E acho que foi por aí que meu risco foi ficando preguiçoso.

Tenho o grande prazer de me corresponder dentro dos padrões de outros tempos com algumas pessoas. (Só com meu pai que não, com ele as cartas são sempre digitadas, impressas e assinadas – ele prefere assim.)
Sempre que escrevo para os amigos, tomo cuidado para ser clara nas notícias e não desagradável na letra: pior coisa ter que espremer os olhos, virar o papel, analisar o contexto para decodificar palavra.
Mas reparo que a cada dia o esmero exige esforço maior. Preciso escrever mais devagar para que a arte se cumpra e comunique com alguma elegância, que se não de conteúdo, pelo menos de aparência.

Ontem tinha fome de mandar carta: papel, envelope, correio. Assuntos se multiplicavam e eu a escrever na velocidade do pensamento. Não me importei com o rascunho; mas quando fui fazer o serviço definitivo, não mudou muito. Desisti. Me transferi para o teclado e mandei logo de uma vez o que me fervia por dentro.

Fiquei triste porque a ansiedade tem deixado o traço mal feito.
Escrever no papel era igual namorar devagarinho: escorregar pelo corpo, tatear linhas, sentir na ponta dos dedos, pedaço por pedaço...
Acho que perdi o jeito. 





segunda-feira, 22 de setembro de 2014

inimigo do amor

há coisas que me atrapalham a vida. 
não a vida inteirinha, a vida de todo o dia, a vida corriqueira. mas a vida restrita, a vida de dentro, a vida da madrugada. 

uma delas, e acho que a pior, é o ciúme. já fiz tratado comigo mesma, já pensei um milhão de vezes, já conversei com amigos. nada tira de mim a baixeza de sentimento tão pobre. 

me envergonho. mais que isso, sofro. e sofro duplamente: pela essência do que ele é, e pela maneira que penso os relacionamentos.

no paradoxo do humano cabem muitas coisas, eu sei. é tarefa complexa pensar e sentir em comunhão. 

eu, que sou dada à filosofia da liberdade e reconheço a rapidez da finitude, concordo que temos que fruir o que nos aparece e nos dá prazer. é fundamental tratar a experiência na terra da melhor maneira possível, sem privar daquilo que pode melhorar a vida. 
não gosto de comportamentos indistintos, rasos, vulgares e muitas vezes há confusão entre os dois conceitos: liberdade e promiscuidade. 
no meu mundo as explicações sobre um e outro são bem claras e não existe intercâmbio, mas sei que a barafunda, muitas vezes, se forma com chances escassas de clareza.

o que me interessa é a liberdade, a minha e a do outro - o que vale pra mim, vale pro casal. ponto final? não, porque exerço a duras penas. ao mesmo tempo em que me alegra saber que quem está comigo, está porque quer, porque gosta, porque prefere, me dá quarenta e sete tipos de nós diferentes quando penso exatamente nisso. e se deixar de querer, de gostar, de preferir? 

me mordo de ciúme só de cogitar a hipótese do amado ter memória, lembranças, passado. quando isso pula para o presente, enlouqueço. enlouqueço como se fosse possível querer controlar pensamento alheio. eu quero! 
quero que o amado seja livre para pensar em quem quiser, mas que pense só em mim. desejo que meu par exerça sua autonomia e que ela o leve sempre a mim, em todos, todos, todos os aspectos. 
misto de irracionalidade e arrogância, eu sei. e por saber, me desmonto em ciúme.

procuro não transferir a loucura. tento trancá-la a sete chaves, domá-la e sufocá-la nas noites de insônia. mas o sangue que corre por aqui ferve bem antes dos cem graus, apita na morna temperatura das bobagens corriqueiras. 

e assim se dá a incrível e inaceitável confusão entre o que penso e o que sinto. entre o deixar voar e o querer um satélite. entre o que é racional e o que rasteja no poço das inseguranças. 

sou livre, quero-o livre também. e que isso represente, ao fim e ao cabo, um compromisso de amor mútuo, onde se exerce o poder da escolha entre duas pessoas que talvez não se bastem, mas que se querem a ponto de negar toda a humanidade. 

é hora de voltar para o divã! 




essas coisas que diz toda mulher



Me disseram que eu tenho que usar artigos. Não posso mais, simplesmente, “buscar Maria”, tenho que “buscar a Maria”; não dá para “jantar com Carla”, preciso “jantar com a Carla”.

Também não posso mais sair de casa sem protetor solar. Nem para ir ao mercado ou à casa da minha mãe... e olhe que tudo fica em Curitiba, que nem sol tem.

A figurar na lista das coisas que não me são permitidas está também a falta do livre arbítrio para atender ou não o telefone. É preciso sempre dizer alô e esperar pela surpresa.

Eu tenho minha própria relação de impedimentos, que desenvolvi depois de algumas invertidas: não falar alto, não correr, não beber em demasia, não substituir o café da manhã por chocolate, não chegar atrasada, não gastar dinheiro que ainda não ganhei...

E como se não bastasse todo o rol de repressão, há ainda a quantidade insana de coisas que tenho que fazer e não falo do uso de artigos ou protetor solar. 
Na lista da escravidão cotidiana, muitos itens: eu tenho que acordar na hora, tomar água, ler o jornal, passar rímel, regar plantas, fazer compras, cuidar dos bichos, passar no posto, ir ao banco, me preocupar com o futuro da nação, ouvir o último disco de Fulano, comer granola, responder email, fazer pilates, erguer bandeira, etc., etc., etc.. 
Tudo usando artigos, com protetor solar e telefone em punho. E sóbria, claro. 

Eita vida besta!

domingo, 21 de setembro de 2014

voorjaar

a primavera chegou!

eu sinto, vejo, ouço. parece que dentro de mim mil flores desabrocham quando olho para o jacarandá e ele me sorri roxinho. 

é tempo de tirar os vestidos do armário, de ensaiar volta pela praia, de começar a despir o corpo. é tempo das caminhadas de fim de tarde ou de começo de dia. é tempo de sorrisos.

gosto de ganhar os beijos do sol, ele me sorri carinhoso e em ordem terna me diz: "eclode, Adriana, o verão está por um triz!". obedeço: lavo os tapetes, renovo as plantas, abro as janelas e arrumo os móveis. preparo a casa, o espírito, a vida. sorrio feliz.

o vento que traz as novidades é suave e anuncia que no giro do planeta há vida começando, renascendo, refazendo, ressurgindo. e que há também continuação, permanência, prosseguimento. 

não cubro a cama com pétalas porque as prefiro grudadinhas em miolos, na união inexplicável do belo, mas tenho vontade de sonhar entre os perfumes e cores.

a primavera chegou! 
  

sábado, 20 de setembro de 2014

fundamental é mesmo o amor...



Não se mate
(Carlos Drummond de Andrade)

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será [...]


Já não fazia há meses e fiz por muito tempo, hoje saí cedinho de casa para tomar café da manhã em hotel. Louca por um tipo específico de guloseima, escolhi o lugar que mais gostava no tempo do antigo hábito.
Busca rápida pelo salão, encontrei mesinha simpática e solitária. Veio o garçom: “Está sozinha?”. Respondi e ele se apressou em tirar o jogo de louças do segundo lugar e sumiu no salão. À mocinha que servia, pedi que me trouxesse café; perguntou se eu estava esperando alguém, respondi de novo e fui saciar a gula... quando voltei do buffet, para minha surpresa havia pratos, talheres e xícara montados para um acompanhante imaginário. Por fim, o rapaz da conta me perguntou se havia mais alguém comigo.

Nessa semana, um pretendente ao receber minha falta de interesse em relacionamento amoroso, me desejou que eu fosse feliz, que encontrasse alguém que me quisesse tanto quanto ele, que eu não me calasse diante de um amor e que soubesse dizer sim para ser completa...

Me sinto meio ridícula hoje em afirmação que vale quando se tem 20 e poucos anos e os freios soltos para o amor livre, para o querer de tudo um pouco e para a satisfação em voar. Mas o único pensamento que ainda me invade e define é esse, o da certeza do caminhar solitário, longe dos folhetins ocidentais e da falsa monogamia que todo mundo quer ter e ninguém pode dar.
Há nisso um ar de hipponga tardia, coisa démodé, que deveria ficar enterrada nas profundezas das bocas de sino dos anos 70, eu sei. Assim como parece também coisa de quem ainda não tem um par e esconde ressentimento atrás de ideia pouco convincente.
Mas apesar de tudo, sigo caminhando como comecei: sozinha. E se encontro um amor pelos trilhos, não é para completar o lugar da mesa ou da cama, ou para escrever poemas e pedir sussurros, ou ainda para me refugiar de mim mesma. Se estou acompanhada é porque quero e porque gosto e entendo o melhor para o momento.
Não tenho quedas para o compromisso socialmente ditado e também não me oponho aos relacionamentos infinitos da vida inteira. Prefiro pensar e sentir a satisfação de fazer as próprias escolhas de um jeito um pouco mais livre, com a verdade de todo dia e deixar que Tristão e Isolda ocupem lugar na minha ficção – ou não.        
Porque é possível e impossível ser feliz sozinho... 
  

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

sexta, quinta

ai que difícil quando a sexta-feira chega...
quando é sexta e ainda é preciso que seja quinta, que se insista a quinta, que se alongue a quinta, que a quinta continue para que se tranque lá dentro tudo que pertence a ela...

deveria ser proibido rodar a folhinha sem que as pendengas tivessem sido resolvidas, acabadas, rompidas. à Cesar o que é de César. e à quinta o que é de quinta...

o calendário deveria obedecer a ordem das resoluções: coisa solucionada, folha virada. 
do contrário, deveríamos permanecer nos eternos dias dos pólos, enquanto a cabeça não estivesse livre, o novo não viria. e assim poderíamos caminhar nas límpidas manhãs, sem medo, sem passado, sem feridas. tudo bem resolvidinho e  solucionado. 

nessa sexta, que ficou presa à quinta, penso nos poderes dos problemas e me abaixo insatisfeita, pequena, infeliz, humilhada... 
penso também que tenho jeito para mudança, que faz parte de mim jogar para o alto, assistir a chuva e renascer na nova composição que me cair do céu. mas não quero. tenho desgosto em recomeçar. 

não quero outra sexta, mas preciso que ela comece e diga e plante e colha e termine e me diga que com o novo dia outras coisas virão.  

que essa chuva que cai lá em baixo, fresquinha, seja a água que me lavará a alma e me permitirá renascer - para o novo ou para o antigo, sem dúvidas ou medos ou desassossegos.

que essa sexta que se precipita seja para me contar em sussurros o que a quinta não me disse. 


domingo, 14 de setembro de 2014

distrações

revirei cidade, essa e outras, atrás de um carrinho de feira. meu objetivo era claro e simples: não forçar braços, coluna e pernas com as compras feitas sem presença de ajudante ou carro. 
depois de muitas voltas, cheguei ao modelo que, por suposição, observação e leitura, poderia me auxiliar em tão corriqueira tarefa. tipo dobrável, com rodinhas, que sem posição de uso fica do tamanho de uma 007 e com estampa petit-pois brancas na imensidão azul. 
satisfação! 

liquidada a compra, como quase sempre acaba acontecendo, fez-se a demora pela oportunidade do uso. antes, a todo momento meu corpo reclamava pelo objeto; uma vez comigo, rareou-se a utilidade.

hoje, domingo de sol, domingo de feira, domingo de compras, pulei da cama, fiz coque no cabelo ainda embaraçado de sono, me meti em vestidinho laranja para lembrar de prazeres de outras terras e marchei. 
a orgia da feira é um dos prazeres que mais me eleva: todos os gostos, os cheiros, os sabores, as vozes - quando estou na feira sempre penso no Aleph que Borges viu no porão de Carlos Argentino...

e fui me abastecendo de tudo que fazia graça aos sentidos: pêra, uva, maçã, salada mista; rondeli, costelinha defumada, queijo; batata, cenoura, alface. 
para comer pastel, ponto máximo do meu passeio, pedi para que o rapaz da banca guardasse minhas compras. gentil, esticou os braços, agarrou sacolas, sentiu o peso e me sugeriu: "você precisa de um carrinho de feira". foi aí que lembrei. percorri em pensamento a distância até minha casa e vi o carrinho deitado, dormindo, sem estreia, num cantinho da área de serviço. que burra!

sentei na mureta e lamentei a falta do hábito do veículo. por sorte e descuido, o laranja que queimava a visão me fez comer pastel acompanhada da minha amiga holandesa. e mais, me fez comprar mais um, mais dois pasteis para que pudesse dividir tal prazer com minha artista favorita que, de sua janela, no décimo sexto, acompanhava tudo com sorriso fácil. 

na feira, até o que dá errado acaba se inclinando pro lado bom...


sábado, 13 de setembro de 2014

entre dois e quatro graus centígrados

a geladeira da minha casa é espécie de museu. 
já desisti de adaptá-la como eletrodoméstico útil nesses tempos em que a colheita e a caça podem ficar bem armazenadas para os dias mais difíceis. 

o elefante parado no meio da cozinha me conta de outros tempos. é testemunha de festas, presentes e esperanças. é um baú de histórias que se renova e se completa sem dar importância para os prazos de validade.

o lado de fora se transformou num grande mosaico dos lugares do mundo. imãs se amontoam e contam por onde a família passou, as vezes até por quantas vezes a família passou pelo mesmo lugar. 

quando o Dé nasceu, ganhei uma máscara para olheiras, coisa meio gelatinosa que tinha indicação de temperatura mínima para surtir efeitos. desde então ela está lá, azulzinha, intacta. nunca veio para o meu rosto, mas sempre se mostrou pronta para as manhãs que denunciam insônias. Dé e máscara têm, cada um, quase 22 anos. 

tenho também uma coleção de cerveja vagabunda, com a validade vencida em 2006, que serve de piada a um grupo de amigos que procura por bebida fresquinha nas tardes de verão. 

há coleção de shoyo. um para cada pedido de temaki que Lívia fez na entrega express, com a recomendação, não anotada, de não carecer envio do molho. 

uma champanhe repousa deitada há sete anos na espera de uma comemoração digna de sua libertação. 

a garrafa de rum ruim se trancou lá dentro mesmo sem necessidade e observa invejosa o movimento de outras que entram e saem na velocidade das visitas da casa.

acho que eternamente reinará na primeira prateleira o potinho de margarina acabada há muito, mas que se transformou numa espécie de amuleto. 

dentro do freezer, as forminhas vazias do gelo que a Rafaela mastigou. 

o revezamento dos demais habitantes é constante, mesmo assim, alguns se demoram mais do que deveriam, denunciando a presença cada vez que a luz se acende. 

o relato pode me denunciar como dona de casa desatenta, mas, sei bem, que gosto de algumas permanências e de tudo aquilo que mantém a história fresca.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

por que que eu não pensei nisso antes?


Tenho problemas de visão.

Não enxergo muito bem de perto. Como é mesmo o nome disso?
O defeito me faz sempre dar dois passos pra trás.

Na distância consigo perceber melhor. A vida me parece uma imensa tela impressionista. Se estou envolvida, as pinceladas não têm contorno, viram manchas da realidade, imagens que não me dizem. Preciso sair da cena para poder habitá-la com pureza.
Talvez o caso se dê por esse excesso de emoção que sempre está comigo e não permite observações e conclusões. Talvez por burrice mesmo, necessidade do todo já passado, explicado, provado. Não sei.

O passado me parece tão simples e compreensível que qualquer ignaro perceberia à época. Minha existência se resume em viver o presente e o passado ao mesmo tempo, em tempos diferentes.
No agora tenho as confusões cotidianas e o passar de régua nas antigas pendências. Ao mesmo tempo em que me afundo nas emoções do dia de hoje, desvendo as de ontem.

O atraso nas descobertas é uma fileira de dominó infinita. Quando uma pedra derruba a outra e se aproxima entro em parafuso. É a sombra daquilo que já foi, que agora eu sei que já foi e o que foi, que me assusta.
Como minha capacidade para o que está perto é manca, me contamino com o que conheço.
Ao concluir isso, me declaro besta-fera, incapaz do aprendizado e da calmaria para sacar o presente.
Solução? Deixar que passe. Com a próxima subida de sol, resolvo e confundo. 

domingo, 7 de setembro de 2014

tudo gostoso!


Estive fora uns dias. Aproveitei a saída para cuidar do espírito. E isso se converteu em descobertas, risadas, brindes, passeios, conversas, silêncios, olhares, bebidas e comidas.
Quando eu pensei que os biscoitos holandeses e os chocolates belgas já tinham batido o recorde de um dos sete pecados capitais, veio a culinária francesa e transferi pra ela a responsabilidade pelas polegadas extras que trouxe comigo.

Conhecer lugares é também conhecer comidas. E disso eu sei bem e para isso estou sempre disposta. O resultado é visível...

A minha amiga Janete é anfitriã inigualável e todos os dias me fez flutuar no maravilhoso mundo da gastronomia.
Ah! Não tem comparação o que a França inventa! Eu já conhecia os pratos, rolam por aqui há muito, mas na fonte eles ficam ainda melhores.
Como não deu tempo para fotografar as belezas que chegaram à minha frente, tratei de sacar fotos de outros para ilustrar minhas preferências.

10. croissant
tão bom acordar com croissant quentinho, crocante, estalando e derretendo...

9. croque monsieur
ah! no lanche da tarde, com a salada, antes do jantar. toda hora é hora...

8. crème brûlée
tão bom quanto quebrar o açúcar como Amélie Poulain é comer o recheio...

7. coq au vin
galo + vinho = maravilha!

6. quiche lorraine
douradinha, quentinha, deliciosa, quase obscena...

5. blanchette de veau
um pedacinho é igual dar uma voltinha no céu...

4. raclette
é típico da Suíça, mas muito bem resolvido pelos franceses...

3. coquilles saint jacques
eu poderia comer todos os dias, de manhã, de tarde e de noite...

2. crepe suzette
a especialidade da Janete, quem come não esquece jamais...

1. magret de canard
o Bertrand é especialista e estou muito disposta a copiá-lo, os ingredientes já estão aqui em casa...

As receitas de tudo isso estão por aí, no maravilhoso mundo da internet.

Agora eu pergunto: além de tudo isso era preciso me entregar às maravilhas das bolachas holandesas e dos chocolates belgas? Sim!, era!