terça-feira, 30 de abril de 2013

eu, casca de ferida


Lembro pouco dos meus dias passados. Acho que a memória coloca barreiras pra gente poder continuar. É empresa complicada ficar carregando pra cima e pra baixo os dias de felicidade e é também difícil percorrer as avenidas da vida com o peso das mágoas cotidianas.
Tenho acontecimentos que, por alguma razão, ficaram na vitrine da cabeça e volta e meia dou uma olhadinha neles.

Ontem à noite, antes de pegar no sono, um dos pedacinhos que me trouxeram até aqui se exibiu pra mim.
Já desisti de entender as conexões que a cabeça da gente faz. Mas nesse lance de um pensamento levar pro outro e esse outro conduzir para um terceiro, eu cheguei a um dia em que deveria ter uns oito anos.


Eu fazia ballet três vezes por semana. Tudo nos conformes: sapatilhas, meia rosa, collant, rede para o cabelo em coque, gestos delicados e passada suave. Menina esbelta, ágil, disciplinada e flexível, tinha quase tudo pra ser bailarina. Me faltava o interesse. E ele me faltava tanto que eu nem decorar demi-pliê conseguia. Minha cabeça sempre estava no álbum de figurinhas ou no cachorro quente da cantina ou no jogo de caçador do recreio ou no papel de carta da coleção ou em qualquer outra coisa que não se relacionasse ou misturasse às aulas para meninas bem comportadas e dotadas daquele ar etéreo que sempre me faltou...

Pois bem, num final de tarde, entre a tentativa mal sucedida de uma meia-ponta e o fracasso em um tendu, eu espiava pelo vidro da porta os guris do judô. Por algum motivo eles não estavam em aula e brincavam, corriam, investiam em todo tipo de algazarra, conseguindo até fazer bola com a faixa-patente amarela para um futebolzinho improvisado.
Fingi vontade de banheiro e saí da sala. Como teco-teco na bola de gude era o meu viver, logo me meti na fuzarca dos meninos e, feliz da vida, dividia corre-corre e gritaria. Vez ou outra uma espiadela na porta de vidro para, pelo reflexo do espelho, sacar em que momento da aula estavam as gurias flutuantes.

Quando o tempo regulamentar se aproximava do final, era hora de voltar da gazeta. Com pressa, não calculei bem e não pensei na dificuldade que seria frear uma sapatilha em alta velocidade e me espatifei na porta de vidro. Cacos para todos os lados – cacos meus e cacos da porta. Por sorte, fiz minha entrada triunfante de joelhos e foram eles os premiados no acidente. Levei um milhão de pontos que demoraram a fechar e mais ainda a me devolver a liberdade primeira de ir e vir.

Toda vez que lembro desse episódio, vou às gargalhadas quando penso numa menina no pronto socorro do Pequeno Príncipe, que, horrorizada com meu estado disparou: “Guria, como você rasgou a sua meia-calça?”.



"Procurando bem
Todo mundo tem pereba
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem
E não tem coceira
Berruga nem frieira
Nem falta de maneira
Ela não tem

Futucando bem
Todo mundo tem piolho
Ou tem cheiro de creolina
Todo mundo tem um irmão meio zarolho
Só a bailarina que não tem
Nem unha encardida
Nem dente com comida
Nem casca de ferida
Ela não tem" (...)

segunda-feira, 29 de abril de 2013

quando eu for, eu vou sem pena


89 anos bem vividos, bem aproveitados, bem gastos! A existência de Paulo Vanzolini foi de total contribuição aos meios que decidiu dedicar tempo e esforços. 

Na ciência, organizou vida e cabeça para se especializar zoólogo. Tornou-se doutor pela Universidade de Harvard; organizou coleção de 130 mil bichos, entre répteis e anfíbios; montou biblioteca pessoal com mais de 50 mil volumes, que carrega o título de a maior da America Latina; idealizou um sem-fim de projetos; encabeçou estudos e colaborou com a atenção de quem compõe, encaixando nota por nota, acorde por acorde, com o desenvolvimento de pesquisas tão importantes que hoje há uma coleção de táxons em sua homenagem. É ótimo ver e saber um nome nacional cheio de respeito e de admiração na ciência mundial.

Na música, não colecionou obra extensa. Mas tudo, absolutamente tudo, tem o cuidado microscópico que aprendeu na outra atividade. É fundamental citá-lo como representante (ao lado de Adoniran) do samba paulistano, da narração dos costumes, lugares e situações das gentes tão misturadas da grande cidade do Brasil. 

Vanzolini é dono daquelas maravilhas sutis que embalam a alma e despertam os sentidos. Seja no drama de “Ronda”, no conselho de “Volta por Cima”, nas reflexões de “Samba Erudito” ou no humor de “Praça Clóvis”, a sofisticação de música e letra dá ideia das 65 maravilhas que compõem o conjunto de sua obra musical.

A ciência e a arte ganharam um grande trabalhador. Hoje não perdem, mas colhem frutos plantados durante quase um século de vida. Feliz do país que pode ter em sua relação de grandes homens, uma figura tão rica como Paulo Vanzolini, um cientista do samba, como passou a ser chamado. 



Quando eu for, eu vou sem pena
Pena vai ter quem ficar

Morena tão desamada e tão precisada de amar
Açucena delicada sem a mão lhe cuidar
Curva de rio de sereno sem proa pra navegar
E tanta beira de estrada sem um moço pra pousar

O que eu fiz é muito pouco
Mas é meu e vai comigo
Deixo muito inimigo
Porque sempre andei direito
Agasalhei neste peito muita cabeça chorando
Morena minha até quando você de mim vai lembrar

Quando eu for, eu vou sem pena
Pena vai ter quem ficar





quinta-feira, 25 de abril de 2013

na cama, eu fico pensando


As vezes levanto sonhando. Tem manhãs que nem acordo.
Às seis desperto, as sete caio, às oito tenho vontade de voltar.
Me delicio com os dias de preguiça e as noites de grande disposição. 
De dia eu faço graça, à noite dou bandeira.
Bobeira!
Lençol fresquinho, coberta quente e travesseiro fofo são meu passaporte. Relógio é inferno. Inverno é verão e o escurinho cai bem a qualquer hora.
Meia-luz, meia lua, meia noite, mais meia hora, meia volta, volta e meia, pés sem meia.
Gosto de pijamas. Pijamas curtos, longos, macios, sem manga, que cobrem, que despem, que deixam em pêlo.
Gosto de água. Ao lado, fresquinha. Antes, no banho. Pra beber, pra benzer, pra banhar...
Gosto de silêncio. Silêncio de passarinho pela manhã. Silêncio de sussurros à noite. Silêncio de boas conversas a qualquer hora.
Na cama a realidade não tem vez. Na cama os prazeres do corpo e dos sonhos; dos sonhos de dormir e dos sonhos de acordar. Na cama até o sol raiar, até a lua subir, até o outro dia. E o outro.
Na cama, pés, beijos, braços. Luta. Flores.
É na cama que a vida acontece!


quarta-feira, 17 de abril de 2013

sempre por aqui


Poucas vozes me comovem tanto quanto a do Renato Braz. Já o vi mil vezes em show, ele só melhora. Todos os seus discos (aqui em casa em dobro, porque minha Lívia também os tem) estão escangalhados de tanto rodar, de tanto entrar e sair do carro, passear e voltar das casas dos amigos, ir e vir... 

Como se não bastasse ter essa voz e essa afinação toda, ele é ótima pessoa! Pai dedicado, amigo generoso, criatura bem humorada. Leve, bacana, bom sujeito. Decente!

Já escrevi sobre ele tantas vezes, que pode dar a impressão de não haver mais nada a ser dito – só escutado. Mas, eu sei, ainda não consegui arrumar as palavras de modo que fique claro o tanto que gosto dele e de sua arte.

Lembro da primeira vez que fui à sua casa (ele nem lembra, aposto), faz muito tempo, mais de década. Conversávamos uma groselha qualquer e de repente ele sacou o violão e cantou. Eu quietinha, sentada no sofá, nem chorar consegui. Acho que nem respirar eu respirei. 

Nos meus momentos de solidão, ele me acompanha de jeitos interessantes. As vezes me aumenta o sofrimento, as vezes alivia, as vezes traduz.

Faz alguns meses que não nos vemos. Tempo muito grande para a amizade e o bem querer, mas o trago aqui, bem aqui dentro: na lembrança dele cantando na sala da sua casa ou na maloqueirice dele deitado na rede da minha.

Ei, Braz, é muito bom tê-lo aqui!



Tentei postar videozinho lindo, mas não rolou. Então, olha link:

http://www.youtube.com/watch?v=FzP_lMtxyY0




terça-feira, 16 de abril de 2013

cafona, eu?


O bom de ter um blog é que eu posso publicar qualquer tipo de farofa que me venha à mente.

Um dia desses, a Laís Mann me convidou para participar do seu programa “Discoteca Particular”. Trata-se de contar um pouquinho sobre o que algumas pessoas ouvem em casa ou sobre o que colecionam ou sobre o que preferem ou soube suas referências. A resumir: é uma escolha de dez músicas utilizando um critério muito particular do entrevistado.

Pois bem, lá fui eu, escolher dez músicas. Claro que uma coisa assim não pode dar certo! Na primeira tentativa, eu exageradamente cheguei a 87 músicas que considerei imprescindíveis na minha discoteca. Parei, respirei, peneirei e tudo ficou igual, com algumas possibilidades de acréscimo. 

Fiquei a pensar sobre os motivos que me fazem gostar ou não de alguma música. Estou a falar daqueles motivos que superam tudo que a gente sabe de qualidade técnica, de virtuose, de construção, de interpretação, etc.. Sim, porque algumas músicas são meio pobres, meio cafonas, meio mais ou menos, meio menos e mesmo assim dá uma coisa tão boa ouvir... 
Ah! A memória afetiva, a resposta rápida pra acabar com esse papo. Não acho que seja diagnóstico certeiro. As vezes sim, mas as vezes não.  

Nos meus momentos de cafonice absurda canto, com voz solta e gestos largos, a sentir cada pedaço da composição de gosto duvidoso, letra simplista, arranjo pobre e instrumental bobo. Serei eu uma cafona enrustida?   

Aqui três versões de "La Barca", de Roberto Cantoral, que amo, mas sei ser um grande marco da cafonice... 


O Caetano dá uma sofisticada no lance.

Com a Maysa tem mais drama, mais trama

Los Tres Caballeros, o trio "dono" de La Barca. O Cantoral, se não me engano, é o do meio.


Como até cafonice tem limite, não coube aqui o inacreditável Luís Miguel.


quinta-feira, 11 de abril de 2013

contra e a favor

Li na revista Ideias uma lista feita por Fábio Campana sobre coisas que ele considera abomináveis. A divertida leitura (que pode ser feita aqui) me inspirou a duas listas: uma positiva e outra negativa.

Foi uma delícia fazê-las!



Gosto de flores. Gosto quando recebo flores: em buquês, vasinhos, paisagens ou lembranças. Adoro bilhetinhos de amor, diário novo, lápis de cor e fotografias antigas. Papo com os filhos, passeios diurnos, viagens bem planejadas e risadas espontâneas me fazem feliz. Tenho imenso prazer com boas conversas, mão estendida, presentes, surpresas e quando sinto gratidão. Muita simpatia pelo movimento das nuvens, pelo colorido que o sol deixa no céu nos finais de tarde, ventos moderados e temperatura agradável. Gosto de pessoas generosas, dispostas, de boa vontade, solidárias e com bom humor. Aprecio aneis, mas somente um por mão. Gosto de abraço apertado, beijo no rosto, na mão, na boca. Fico leve com perfumes suaves e elegância. Acho chiquérrimo homem gentil, inteligente, paciente, intrigante, vigoroso e responsável. Amo dançar na chuva, tomar banho de mar, de sol, de chuveiro, de banheira, de loja, de sal grosso. É fundamental comer bem, beber bem, ter paladar apurado. Gosto de meia-luz, de música boa, de textos surpreendentes. Fico orgulhosa quando saio com meus filhos, quando alguém que respeito admira meu trabalho, quando cozinho para os amigos e quando troco de carro. Adoro bolo de fubá, de chocolate, de doce de leite. Adoro bolo e as sobremesas da Thaís e da Beatriz! E adoro também cheirinho de pão caseiro saindo do forno, aroma de chá de capim-limão e a comidinha da minha mãe. Fico em paz em tardes de sábado, dias de dezembro e vésperas de feriado.

Há muitas coisas que me movem, me divertem e me alegram. Muitas delas não precisam de grana, outras precisam. Vou vivendo... Ah! Na vida e na arte, em casa e na rua, no trabalho e no passeio, no trânsito e no mercado, na TV e no rádio, sempre, sempre, sempre é preciso leveza!








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Por ordem de lembrança, nunca de relevância: 

Não gosto de extremos. Não gosto de gosto amargo na boca nem de doce que arranha a garganta. Não gosto de nada muito gelado nem muito quente. Detesto quem vê ameaça em tudo e quem nada teme. Tenho certo desprezo por funcionário de banco, despachante, caixa de casa lotérica, bibliotecária mal amada, roupa de contador e atendente de telemarketing. Me irrito profundamente com música alta, música ruim, música fora de hora, de contexto, de contrato, de controle. Odeio filas, todas as filas. Me incomodo com cachorros barulhentos, gatos deslizantes e sapos cantores. Não quero perto de mim pastor de igreja evangélica e seus seguidores alucinados, padre hipócrita e suas beatas de plantão, líder hare krishna e seus instrumentistas carequinhas. Não gosto de quem quer salvar o planeta. Odeio quem se leva a sério, quem leva tudo a sério e quem não leva e não traz nada. Fico constrangida na presença de preconceituosos, falsos moralistas e quem diz que nunca mente. Desconsidero quem ainda consegue falar, contra ou a favor, sobre Paulo Coelho, Rede Globo, rock’n’roll, telenovela, feminismo, Hollywood, Fidel e imperialismo norte-americano. Acho trocadilho algo insuportável, assim como piadas fora de hora, citações descabidas, carona em destaque alheio e papagaio de pirata. Odeio gente mesquinha, gente que confere a conta, que conta o troco, que economiza na gorjeta. Tenho raiva de veranista, de churrasco, de happy hour, de confraternizações de empresa. Abomino grosserias, tom de voz alto e cotovelos na mesa. Sinto aversão por quem não tem humor, por quem é ignorante, por quem é medíocre, médio, morno, fraco. Acho horrível saia acima do joelho, lingerie a mostra, calça apertada e sapato desconfortável. Não gosto de reclamações excessivas nem de críticas gratuitas. 

Minha lista é imensa. E eu ainda nem comecei a falar sobre contas a pagar, a receber e a perder... nem citei banheiros de aeroporto, sinal da TIM ou aranha marrom. Também não lembrei de churrascarias aos domingos, salões de beleza, shoppings centers ou nervo ciático. Melhor parar por aqui... 


sexta-feira, 5 de abril de 2013

devagar e urgentemente

eu sou feita de silêncio! falante, gosto de ficar quietinha. 

as palavras soltas, livres, aladas me jogam pra dentro do nada. e o nada é quieto.

os olhos marejam, a garganta seca, os gestos ficam pequenos e a boca fala o que o coração nega.
todos os meus silêncios dizem muita coisa. mais do que todas as minhas palavras.

quando me meto a escrever, é do silêncio que os textos tratam.  

eu queria cometer uma carta de amor. uma carta de outro país. uma longa carta que falasse sobre tudo. daquelas, cheias de perigos e de certezas. uma carta que consumasse todo sentimento. 

lápis afiado, papel em branco: me calo!