sábado, 31 de maio de 2014

matéria acumulada



do outro lado do espelho vejo minha mãe
olhos no céu
queixo no horizonte
espinha ereta

no sumidouro encontro os olhos de minha mãe
tão verdes feito as esmeraldas
do velho anel,
felina na escuridão

a minha mãe está no reflexo que denuncia
sou vítima e algoz
heroína e sobrevivente
repelente e imortal

carrego os olhos de minha mãe
ela sou eu mesma
interestelar em difusão
mensagem confidencial

a quem interessar possa...



Saí machucada. Nervos em frangalhos, injustiça a cortar a alma. Cansaço. Fiquei surpresa com algumas costas viradas, com o mesquinho instinto de sobrevivência, com o comportamento de quem tem obsessão por si mesmo.

Ainda no chão, recebi deboche, críticas, cartões vermelhos. 

Não fiz queixas. As queixas são sempre humilhantes. Caio, mas não sou dada ao abate – não gosto do sabor da amargura tomando a palavra em fel.
Também não baixei cabeça, a submissão não mora em mim.
Pena que minha mãe me educou dentro daqueles princípios católicos e eu não seja de vingança. Juro que penso que muitos por aí deveriam se ferrar, mas não faço movimento para isso. Não acredito no destino nem em lei maior; cada um que decida por si o próprio futuro e se abrace nas próprias escolhas.

Segui a vida e conheci outras mãos que se estenderam solidárias. Momento precioso, provei, naturalmente, a peneira do joio e do trigo. Foram ficando aqueles que tinham que ficar no baú do maior tesouro: a amizade. Trigos!

Na construção de minhas relações sempre soube dos que me olhavam de canto, a enxergar cargo, posição, vantagens. Aos pusilânimes doei meu tempo em compaixão. Agora, quase desprezo, não fosse por essas linhas que ainda lhes relembram.

O difícil mesmo foi reconhecer os enganos. 
Do passeio perto do precipício, que foi minha saída da rádio, entendi que não há pára-quedas que amortize o desabamento da decepção. Tramas por um cargo, um carguinho de nada, que relutei em aceitar e do qual me desprendi assim que o reconheci menor, menor do que eu? Maquinaram por isso? Oh! Que pobreza!
E aqueles, que estavam comigo, em volta da mesa, a esbanjar sorrisos e sumiram no mundo? E os que por quem ergui defesa e agarrei como meus? E os que puxaram o tapete?
Estão por aí, espichados em outros, na terrível humilhação de rifar lealdade. Joios.

Acho que essas palavras sobre esse lado da moeda já foram muitas... e acabam injustas com aqueles que fizeram da minha vida melhor, que iluminaram o meu terreiro, sacudiram a minha tristeza. Esses, os decentes de caráter, os que o entregam o espírito à fala, os que não confundem discursos terão minha eterna gratidão e amizade.

Um último drama dedicado aos deficientes de caráter: eu posso ter cara de boba, um jeito meio tongo, a opção pela paz, mas não sou idiota. Não há possibilidade alguma de eu entender que me misturar a esse tipo de gente, que são vocês, faz parte do jogo. Do meu jogo, não.
Ah! Cabe a mim decidir, e minha resposta é não!               

Pareço amargurada? Não se engane, sapateio. 

quarta-feira, 28 de maio de 2014

palavras



Tenho preferência por algumas palavras. A sonoridade em primeiro lugar, depois, bem depois, o significado. As vezes é possível juntá-las, noutras são andantes solitárias, passeantes na minha estreita gramática.
Quando ouço uma que não conheço fico nervosa, tensão de vocabulário. 
Se invento, guardo-a no baú das ridicularias, sei bem que não sou Rosa.

As minhas prediletas ficam ali, na classe dos substantivos. Concretas, abstratas, próprias, comuns...

Também passeio muito com os adjetivos, gosto que se flexionem, que se locutem, e me ajudem a descrever, qualificar, caracterizar, desmoralizar, exagerar...

As minhas ações nem sempre estão em verbos, as vezes se traduzem em outras combinações que exibem melhor o que faço. Quando digo, por exemplo, borboleta solitária ou imensidão de mar ou juízo final ou flores de cerejeira, estou a exercer de um outro jeito a dinâmica de flexão de modo, tempo, pessoa ou número.  

Uma época inventei de pensar etimologicamente, quase enlouqueci. As palavras vinham de algum lugar, tinham história própria e isso me obrigava um respeito diferente por elas, um emprego particular para cada uma. Exercício que perturbava a razão e a fluência. Larguei mão.

Tive a fase de pensar em sinônimos. A eleita usada nunca era a original, sempre uma outra. Perdi faculdade natural da expressão. Ficava com a cabeça preza na diversidade do dicionário e esquecia do objetivo de comunicação.

Pavor de rimas, obsessão por rimas. Quando decretei que trocadilhos eram as combinações mais pavorosas da língua, só sabia fazê-los.

Admiro aqueles que conseguem expressão por desenho, imagem, música. Quanta coisa dita sem palavras! Quanta capacidade!

Sigo tagarelando no teclado, ouvindo na leitura, me esbaldando com os post-its e contabilizando segredos nos grifos de outros.
É a linguagem que me dá a grande euforia de participar dessa classe de mamíferos. 


saudações aos que têm coragem



Sempre amei feito ampulheta. A areia que caía era a rotina ordinária que ia matando, devagarzinho, todo o sentimento. Umas demoraram mais a escorrer, outras deslizaram feito água. Sabia que o fim tinha hora para chegar e ficava observando o conta-gotas do tempo.
Entendi que, como tudo na vida, o amor tem começo, meio e fim.

Alegrava-me os começos: flores na porta, cartões inesperados, declarações constantes. Olhos em brilho, faces coradas, roupas novas. Corpos ardendo.

Quando alcançava o topo, a alegria absoluta, já sabia, era hora da descida. Com medo dos dias que viriam depois, me fechava e me preparava para a derrocada.

O final se aproxima lento, manhoso, cheio de artimanhas e dúvidas. Vem andando feito raiz de árvore agarrando os pés, a alma. Faz perder o sono. As unhas ficam sem esmalte e só se enxerga em mono. Ele dá voltas, mas chega um dia e se anuncia.
Lágrimas, juras inversas, o avesso. As vezes o avesso do avesso.

Mas uma ampulheta sempre pode ser virada. E o que está lá no fundo tem chance de cair de novo. Algumas vezes fiz a manobra. A lógica é a mesma quando o vidrinho alcança os 180o. A areia escorre e tudo se repete.

Cansei.

De agora em diante, a ampulheta do amor não faz mais parte de mim. Entrei numas de não ter cronômetro para o fim, de não ter fim, de embarcar no feliz para sempre. Quem se arrisca?


terça-feira, 27 de maio de 2014

sem filtro



Alguns gostam de vatapá, outros preferem passear em veleiros.

Estamos aqui reunidos no planeta azulzinho, a dividir o espaço, o tempo, a nos acotovelar por uma chance, por um momento.

Perambulamos todos com olhos no espelho, no da frente e no retrovisor. Desviamos ameaças e plantamos árvores.

As pirâmides continuam lá, erguidas, equilibradas e a água modifica os desenhos na areia da praia.

Com malagueta apuramos o tamborim ou provamos tragos de outras bebidas.

Colecionamos figurinhas, cães, álbuns, filhos, memórias.

Em segundos nenhum de nós, nenhum de todos nós, estará aqui; entulharemos cemitérios. Friedrich viverá.

As chansons não explicam, ouço um tiro lá fora, o semáforo está fechado.

Alguns acham que conhecem pássaros outros explodem átomos. Um homem esculpiu uma mesa. 

Inventaram o cigarro. Todos querem flores em vida.

Há paz na terra e guerra universal. 

segunda-feira, 26 de maio de 2014

na fumaça do cigarro



Comecei a achar que essa tristeza que não passa é meu estado natural. Talvez a minha linha-mestra seja essa, uma eterna lágrima que se precipita mas não cai.
As variantes em torno disso, momentos de alegria suprema e de sofrimento desesperante, são os temperos que me tiram da pasmaceira do cinza.

Os dias vão passando e eu as vezes me revolto. Para vingar solto gargalhadas, danço, bebo, como chocolate, brinco com o cachorro, observo os filhos, ouço o bumbo da Mangueira, tomo banho quente. Como desforra, o reconhecimento dos pequenos prazeres que chacoalham a alma e declaram amor à vida.

Teve um tempo que eu achei que deveria atingir felicidade plácida como modus operandi. Obrigação impossível. Larguei mão e enfileirei os dias para poder observar melhor o que poderia viver em cada um. Me fiz assim, um dia de cada vez. Só hoje.
Sem projeções, sem lamentos, sem grandes perspectivas. O que tenho para hoje é o grande material para a vida inteira. Tudo resumido no presente do indicativo.

A ventania do futuro ainda me castiga. Vez ou outra me pego pensando sobre o dia de amanhã, os sonhos, a sobrevivência, a aposentadoria, a pousada em Antonina. Faço esforço para a distração desses pensamentos. Choro, mordo os lábios.
Tenho pena de deixar as ilusões trancadas. E me assusto quando penso que virei pessoa sem devaneios, sem fantasias, sem planos: mendiga a recolher farelos da existência.

Percorro os caminhos internos e descubro lá atrás que tudo isso é medo da decepção. É fraqueza de não querer lidar com o adverso. Anemia no caráter para o desgosto.
De alguma forma, essa fragilidade me coloca de pé para combater os desenganos ao mesmo tempo que os coleciono.

Procuro não exercitar a queixa e me atirar de verdade em tudo que tenho, que não é pouco. Sem garantias, vivo hoje.
Amanhã? Não sei. Amanhã é terça-feira e tudo pode mudar.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Primeiro Motivo da Rosa


Amanheci dentro de um dia perfeito.

Quando cheguei na cozinha, a pia estava limpa, seca, vazia, o suco pronto, pão quentinho.

Apertei o botão e Mozart, rápido mas não muito, tocou baixinho pra mim.

Com os primeiros raios, veio o cão. Preguiçoso, deitou-se no tapete e encostou a cabeça no meu pé. Ficamos por ali, em silêncio, vendo o dia chegar, os barulhos anunciantes, o friozinho pela janela, árvores em balanço suave.

Disse não ao jornal e saquei Meireles, a Cecília, abri em página qualquer, como amuleto da sorte, oráculo do dia, biscoito chinês, dica zodiacal. Para melhorar o que já parecia o ápice, ela me disse assim:
Vejo-te em seda e nácar,

e tão de orvalho trêmula,
que penso ver, efêmera,

toda a Beleza em lágrimas

por ser bela e ser frágil.



Meus olhos te ofereço:

espelho para face

que terás, no meu verso,

quando, depois que passes,

jamais ninguém te esqueça.



Então, de seda e nácar,

toda de orvalho trêmula,
serás eterna. E efêmero

o rosto meu, nas lágrimas

do teu orvalho... E frágil.

O escândalo das primeiras horas se perpetuou durante o dia e hoje nem senti falta do mar...



pare, olhe, escute, olhe de novo, confira, reclame imediatamente



Os amigos mais de perto sabem como detesto shopping. De-tes-to! Frequento na medida de minha necessidade, nunca por passeio, por escolha primeira. Até a ida ao cinema foi reduzida em minhas ocupações de diversão. 
Mas vez ou outra é inevitável. Não. Até é evitável, mas causa transtorno sem fim...

Final de semana passado, cada filho tinha um compromisso diferente, horários apertados e vontade de almoçarmos juntos. No meio do caminho, o Park Shopping Barigüi.
Sábado de sol, dia bom pra pegar um restaurantinho ao ar livre, curtir uma feijuca, rodar o limão no copo e se entregar à caipirinha. Sem tempo, fomos pro shopping.

Como não tenho paciência pra procurar vaga em estacionamento lotado, usei os serviços de Vallet: rapidez, conforto, manobrista, encurtamento de trajeto. Ótimo. Será?
Me foi cobrado pela parada, 21 mangos. Tudo bem, acho justo.

Na volta pra casa, percebi o porta-moedas aberto. Além das pratinhas habituais, carrego algum dinheirinho para emergências cotidianas: quando a Lívia vai descer do carro e lembra que não tem dinheiro pro lanche, quando resolvo comprar frutas no sinal, quando paro rapidinho na padaria. Pois bem, abasteci o cofrinho um dia antes e por isso sabia tostão por tostão o tanto de graninha que tinha por lá.
Percebi que fui roubada. O palhaço do manobrista me levou vintão.

Pô! Que desaforo!

Cheguei em casa e escrevi ao shopping. Relatei, reclamei. Ontem recebi ligação de uma menina que não deveria ter mais de 15 anos a me dizer que não podiam fazer nada, que “os manobristas são treinados, senhora, para não mexer nos pertences dos carros” e que se isso acontecer de volta eu tenho que relatar no mesmo dia para que providências sejam tomadas.
Rebati e disse que comuniquei o fato meia hora depois de ocorrido. “É que o canal de comunicação não trabalha final de semana, senhora”.

Então, fica o recado: seja roubado só em dia útil!  

terça-feira, 20 de maio de 2014

30 mil vezes



Trinta mil vezes visitaram meu blog.
Os amigos, decerto. Os inimigos, talvez. Os curiosos, os que não conheço, os que têm um tempinho, os amigos dos meus amigos, os amigos de meus inimigos, os inimigos de meus amigos...

Tem gente da Ucrânia, da Alemanha, dos EUA, Polônia, Reino Unido, Itália, Argentina. Fico curiosa.
Gosto de me comunicar pelo blog, de saber que há interesse pelo que penso ou sinto. Vaidosa.
Escrevo sem compromisso, só o que me dá na veneta, quando quero, quando a musa se apresenta, sem cobranças. Sou preguiçosa.
Mesmo assim, trinta mil vezes fui lida. E sinto agora um orgulho piegas de estar de alguma maneira entrelaçada a outras vidas, na sequência infinita que é nosso papel humano na terra – me sinto parte da poeira cósmica, sou grão de areia como meus irmãos de jornada, estou integrada a vida de outros na mesma corrente planetária de comunicação.

Segundo o que sei das estatísticas, trinta mil acessos é pouco. É nada. É o que gente importante tem em míseros instantes, em algumas horas; um dos blogs mais visitados do Brasil tem 400 mil visitas por dia.
Mas ainda assim comemoro: trinta mil vezes leram o que eu escrevi!

Não faço fofoca política, não ligo para celebridades, não tenho humor reinante, não comento manchetes de jornais, não há linha editorial. Escrevo o que rodopia dentro da cabeça, conversas sem encomendas.
Vou vivendo e de vez em quando postando. É um jeito de reinventar o papo, de alcançar o outro, de trocar.

Sei que não sou sempre aplaudida e que tenho uns leitores que me visitam naquela relação meio doentia de odiar o que escrevo e só ler para comprovar suas teorias sobre minhas besteiras. Não importa. Ainda assim tive trinta mil vezes a atenção, o tempo, os olhos críticos.
Tenho também a grande honra de me apontarem, vez em quando, como tradutora de pensamentos alheios, volta e meia recebo a mensagem “era isso que eu queria dizer” ou “eu penso como você”. E essa é minha glória.

Do quartinho dos fundos, que transformei em escritório, trinta mil vezes repito: estou feliz, agradecida, agraciada.
Trinta mil compassos! Evoé!

os alquimistas estão chegando...



Carla,

O outono está no fim. Caíram as folhas, os cabelos, as saias. Logo o ar impassível desabará sobre nós e o vento cortante rasgará nossas fibras. As lãs sairão dos armários e os jeans se misturarão a botas, luvas e capas. As gentes esconderão o corpo, as vezes com elegância e dignidade, as vezes com extravagância e agrura.

Vivemos o último suspiro do verão, os dias em que ainda é permitido usar mangas de camisa para passear nos vinte centígrados.
São as últimas horas em que sair da cama, entrar no banho, lavar a louça, caminhar com o cão não são tarefas das mais penosas.  

Os ipês cor de rosa começam a chegar. E talvez seja essa a boa notícia desse lado do hemisfério. Colorido nas árvores, daqui a pouco a pintar tapete no asfalto.

Pra mim o outono nunca foi prenúncio de inverno, sempre finalzinho de verão. De qualquer maneira é transição. E você sabe o que essas passagens fazem dentro da gente, né? Viramos bicho, bestas a obedecer a natureza e nos guiar por suas fases. Tenho medo do frio, do escuro, dos dias menores, dos ventos uivantes, das longas noites... Um mês para esse encontro.  

Sei que para sua média anual do Amazonas a notícia de friozinho pode parecer bálsamo, causar inveja e saudade. Mas não se engane, Carla, é o verão se despedindo e isso nunca é bom.
O mar está gelado, o sol tem preguiça de boiar por muitas horas no céu, os finais de tarde em aquarela são cada vez mais raros.

Apesar da iminente mudança, as prestações continuam chegando, a geladeira se esvazia, a gasolina acaba. Apesar do novo instante que se anuncia em nossa cíclica vida, é preciso arregaçar as mangas, seguir para o trabalho, bater o ponto. É preciso desprezar a mudança e continuar.

Seria bom se você estivesse por aqui, pelo menos poderia apreciar sua coragem louca de sair da cama antes das cinco da matina, de pular em piscina fria, de se encantar com geada na grama e de explicar minhas nuances com a chegada da estação.
Seria bom se você tivesse por aqui!   



quarta-feira, 14 de maio de 2014

que brisa é essa?



O futuro está tentando se aproximar de mim. Chega aos poucos, sem aviso nem estardalhaço. Vem, me tira pra dançar, me sussurra no ouvido uma ou duas palavrinhas em língua que não conheço, faz meia volta e some no adiante. 
Ele brinca, me venda os olhos e empresta a sensação de sua chegada. É mestre no jogo do óbvio ulterior, derrama suspeitas que depois do escorregar do tempo se transformam em lembranças evidentes.

Olho fundo no espelho, reviro pensamentos, busco conexões. Espio o nada que ele é e me recolho sem resposta, me falta a veia estrategista, o saber da leitura e da projeção.

Mais valia ter sexto sentido inexistente que descalibrado desse jeito!
Coisas que todas as minhas sensibilidades provadas e conhecidas não alcançam acabam me cutucando de um jeito intuitivo, me dando pistas sem provas de existência e me fazendo ridícula diante do meu existencialismo.

É empresa das piores ter o futuro mostrando cascas de banana, assombrando, ameaçando, esburacando caminhos.
Eu poderia planejar Istambul, casa própria, amor eterno, cabelos ao vento, atenuação de rugas, sol amarelinho. Mas não, essa brisa que me sopra e me arrepia a pele também me amarra e reduz.

As surpresas do amanhã me dão medo. Mas sei, porque é madrugada, há mais medos que perigos. 


sexta-feira, 9 de maio de 2014

domínio público, ignorância privada, dinheiro nosso



Por conta da Coleção MPB para Crianças, há alguns anos me aventuro no prazer de apresentar ao público infantil artistas de nossa música. É trabalho sério, que me proponho porque acredito no que ele representa a respeito da memória, história e da identidade brasileira. É também trabalho cansativo, que precisa de perseverança e força para lidar com o bombardeio que vem em sentido contrário.

De Santa Amélia a Aracaju, de Florianópolis a Brasília, de Londrina a Recife, fui para muitos lugares na labuta de contar sobre Noel Rosa, Pixinguinha, Elis Regina, Tom Jobim... A coleção chegou à Feira do Livro de Paris, se tornou parte de um kit que o Ministério das Relações Exteriores entregou em grande parte de nossos consulados para conhecimento dos brasileirinhos que estão espalhados pelo mundo. E também entrou como material pára-didático em escolas.

A história de cada artista, por si só, é interessante e atrativa: aventuras, contradições, superações. Sei que as crianças gostam porque ficam com os olhos vidrados quando ouvem sobre as maluquices de Ary Barroso ou sobre as dificuldades de Carmem Miranda.
As informações têm filtro, claro, não dá para largar um tijolo de biografia na cabeça dos pequenos. Mas as que constam em visitas, palestras ou nos livros são fieis, verdadeiras.

Na hora de ouvir as músicas, invariavelmente, ocorre um estranhamento geral. Não é fácil, nos dias de hoje, se entregar ao chiado dos bolachões da primeira metade do século passado. Respiro fundo, aumento o som e tasco Noel cantando. Risadas, torce-torce de nariz, piadas e sempre o mesmo fim: por que ele cantava desse jeito?, por que o som está tão ruim? Com isso, nova viagem de informações começa e percorremos juntos as novidades tecnológicas de cada década e chegamos à parafernália que temos hoje. Duas histórias de uma vez só. Contentamento quase unânime.

Há também a dificuldade do vocabulário. Entender tudo o que nosso Ary quis dizer em Aquarela do Brasil, por exemplo, requer esforço. E é isso que fazemos, as crianças e eu nos debruçamos em dicionários para descobertas, para decifrar metáforas, para aumentar o vocabulário e com isso entender que uma música sempre quer contar alguma coisa - é preciso atenção, ouvidos de ouvir.
Essa é a hora da grande oportunidade de sacar um jeito de escutar música, de entender mensagens, de ler em entrelinhas, de fazer a escolha entre “Agora eu fiquei doce igual caramelo
/ Tô tirando onda de Camaro amarelo” ou “Enquanto houver Brasil, na hora da comida / Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu”.    

A tal da Patrícia Secco, de quem não sei mais do que sua vontade de fazer com que um dos nossos maiores nomes da literatura rasteje em sua pouca possibilidade com o ofício que escolheu, poderia gastar seu tempo com a bolação de tática para elevar o nível de ensino e conteúdo.
Uma história não é apenas os fatos, é principalmente, como eles são contados. 

Horrível pensar que o indiscutível Machado, que atravessa os tempos nos dando infinitas aulas de escrita, de técnica literária, de genialidade com a palavra possa se perder na mediocridade de uma escola analfabeta, pior, que para isso conte com os incentivos federais, com a nossa grana.

Perdão, Machado, eles não sabem o que dizem, o que fazem, eles não sabem nada. 


"Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente 
a sua idéia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e 
desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos."
(O Alienista, Machado de Assis)

Por que cargas d'água Patrícia Secco quer mudar isso?

quinta-feira, 8 de maio de 2014

3X4 - Cris Lemos


Cabelos alvoroçados, aneis nos dedos, chiquérrima em salto ou em biquíni e chinelo, ela diz não à cafonice reinante. A Cris é rainha de todos os espaços. Chega e toma conta do ambiente. Fala por todos, para todos, com todos.

Tem os sentimentos na ponta da língua e acho que por isso canta. E como canta! E só canta aquilo que lhe cai no coração. E quantas coisas lhe tomam: noite clara, vinho, fita e seda, o aceso da paixão e o faz de conta que morre no mar, o revólver e o coqueiro, o verde e o rosa, o general da banda e as mãos de explorador.

O amor tempera sua vida e os impulsos guiam. Se der na veneta, telefona e diz tudo o que sente, depois pensa. Suas vontades gritam insanas, mas passa madrugadas a refletir quietinha sobre a vida, os caminhos, as escolhas.

Cris ri, chora, fala, canta, ergue brinde, tudo ao mesmo tempo. É tempestade que chacoalha quem está por perto. Turbilhão de maluquices e lucidez, ideias e talentos, rock’n’roll e bossa nova, mulher fatal e avó. É muitas e verdadeira em todas. Cris Lemos é uma festa!


sábado, 3 de maio de 2014

troco cárcere privado por gafieira de sábado


Ah! se eu te dissesse sim, tudo estaria resolvido:
sem romance,
frango assado aos domingos,
escuridão à noite,
clima familiar,
nada de relance.

Se eu colocasse o anel, tudo seria encaminhado:
mudaríamos o recenseamento,
humores às últimas conseqüências,
contas a pagar,
televisão e sofá,
novo financiamento.

Se eu caísse na sua, o problema seria outro:
abertura de falência,
horário não respeitado,
visita da família,
disputa pelo controle,
falhas na jurisprudência.

Ah! se eu vestisse o véu, a vida mudaria:
férias em dezembro,
prisão domiciliar, 
rotina ordinária,
chá das cinco,
sem primavera em setembro.