quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

leque, palavra engraçada

finalmente aconteceu de eu ter um leque. ando, pra cima e pra baixo, a me abanar. não com a elegância das europeias do século XVII, mas esbaforida pelo calorão das estações, do ano e da idade.

é divertido ter um leque. nesse momento da vida, não há acontecimento em que ele não seja figurino obrigatório.
o lance de tentar afastar as quenturas internas e externas por supuesto é evidente. mas há outras ocasiões em que ele conta em negrito e caixa alta sobre as intenções. exemplos:
- minha irmã a me falar fofoca familiar. diminuo o ritmo da abanação na medida em que as notícias vão ficando mais picantes;
- se estou na loja e repentinamente a atendente acaba com meus sonhos me contando o preço do vestido, fecho-o rápido;
- quando o gerente do banco tenta me convencer a fazer um percurso diferente na minha conta, olho-o sério, leque fechado apoiado no queixo;
- se a notícia é séria, porém não grave, aumento a velocidade do vento;
- se a notícia é séria e grave, fecho-o dramática e jogo-o no canto do sofá.
- ainda, quando estou sozinha olho para o leque e lhe confesso pensamentos particulares, como quem escreve num diário.
não sei mais viver sem leque. fico matutando como vou fazer quando o inverno chegar. o cachecol não permite tantas possibilidades, na primeira fofoca de família, já estarei enforcada.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

pés no chão

Comecei a dar meus primeiros passos quando tinha sete meses. Antes de completar um ano, larguei os apoios e me mandava pra lá e pra cá sozinha, autônoma, dona de minhas perninhas rechonchudas, a comprovar com a testa a dureza dos móveis.

Algum tempo depois, não sei se pelo exercício precoce ou por alguma má formação ou, ainda, só por modismo, o doutor disse à minha mãe que eu precisava usar botas ortopédicas. Foi lá no Dr Scholl que ela fez a compra, um parzinho tão branco quanto horroroso. Nunca usei. Minha mãe relata que em mínima distração, eu arrancava o instrumento de tortura. Com o tempo fui sofisticando o crime: escondia em baixo da mesa, atrás da cortina, até em cima do escorregador do quintal o par de botas foi parar. Minha mãe desistiu e me comprou Melissa.

Na adolescência, dona de quase 1,80m, o número do meu calçado era 38. Tinha vergonha. Pés muito grandes. Burramente algumas vezes tentei me apertar dentro de um mais socialmente tolerável 36. Bolhas e dores me fizeram desistir. Fiz a opção eterna de All Star 39, além de servir, meus dedos ficavam esparramados, abertos, soltos.

Salto alto? Eu já sou salto alto por natureza, então isso nunca deu certo pra mim. Não consigo sustentar elegância sem ter os pés colados no chão. As vezes em que tentei foram tão vexaminosas que me recuso à narração.

Desde o meu primeiro All Star procuro pelo conforto. Isso acabou se tornando uma espécie de estilo, os seus sapatos são tão confortáveis; que delícia esse seu tênis; onde você comprou essa sandália, parece tão molinha...

Na minha trajetória, zanzeio pra lá e pra cá em marcas que me agradam nos quesitos qualidade, conforto e boniteza.
Era louca por uns modelinhos clássicos da Camper, mas a marca enlouqueceu, tratou de se render ao mau gosto reinante e ainda por cima a compra é impraticável no Brasil.

Mas há um tempinho descobri o pote no final do arco-íris. Meus olhos brilham, as mãos tremem, gaguejo, tenho taquicardia. A marca Outer me tira do sério, criança em parque de diversões. Para dificultar meu auto-controle, recebo email com o simpático, sedutor e perigoso recado: 40% off.   


segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

entre a salvação e a perdição

Sim, eu sei, tenho tendências ao drama. Desde sempre.
É um drama autêntico, sincero, uma coisa que me pega no contrapé e quando vejo já estou estirada no sofá, mão direita tampando os olhos, lágrimas escorrendo e soluços desenfreados por ter lido uma desgraça no jornal ou por não ter recebido telefonema esperado ou por pensar nas pessoas que estão internadas no hospital aqui da frente.
O contrário também acontece. Me animo diante de uma paisagem bonita, gargalho feliz com uma brincadeira boba, dou um milhão de piruetas, bravo! bravo!, ao ouvir boa música.

Como se já não bastasse, me acompanha também o que chamam com desdém de hipocondria. Eu acho que é uma atenção minuciosa a todos os intempéries que podem me aparecer de surpresa. Prudente, estou sempre de olho em tudo. O meu pesadelo é ser paquerada por um vírus desses que rondam por aí e que ninguém sabe o nome ou lhe conhece a face. Ui, credo, isola.

Esses dois ingredientes associados, drama + hipocondria, formam coquetel molotov poderoso. Produzem cenas incríveis, capazes de amolecer o mais duro dos espectadores.
Mas a agremiação tem fundamento, claro que não precisava chegar aos extremos, encostar no limite da sanidade, mas é apegada a firmes alicerces.

Alguns sabem. Tenho uma doença, coisa congênita e não muito comum. Combato-a da forma que melhor consigo. Só numa raríssima complicação morrerei dela, o mais provável é que iremos as duas juntas para a eternidade, nos fazendo companhia e nos atormentando mutuamente, ela a querer me destruir e eu decidida a acabar com ela.

Pois bem, para se mostrar mais forte, a dita cuja da praga foi buscar recurso. Sacou que eu tinha os médicos como aliados e saiu a cata de doença-cúmplice que se dispusesse a ser misteriosa, mutante, leviana, a fazer ares enigmáticos... uma comparsa capaz da submissão para não ser reconhecida. As duas figurinhas torpes e depravadas deram as mãos, fizeram-se promessas, comungaram usando os meus glóbulos como se fosse sangue e da minha pele fizeram pão.

Drama.

Porque os médicos não souberam como nomear esse casamento, nem reconheciam mais os noivos originais, resolveram investigar. Na qualidade de detetive, uma biópsia.
Rapidinho larguei o drama. Porque concluí que grande sofrência em hora assim poderia me jogar num poço sem fundo.

E eu estava quieta, a ouvir as discussões dos homens de branco até que um deles disparou: Adriana, você tem a cabeça muito boa, qualquer outra pessoa no seu lugar estaria desesperada.
E esse foi o gatilho para o desespero. Abriram-se as cortinas. Eu me joguei com a força de mil Kratos na catástrofe. Desabei. Chorei. Me tranquei no quarto, fiquei no escuro de mim mesma aguardando sentença final.

Repentinamente, quem me chega? A hipocondria. Sorridente, meiga, a me fazer carinhos e a sussurrar no meu ouvido Reage, Adriana, você pode estar tombando numa severa depressão. Como era de costume, obedeci. Sacudi a poeira e resolvi ir à luta, faca nos dentes, olhos concentrados, brincadeiras.

Aqui estou, cheia de dignidade, sorrisos, bom humor, a esperar resultado do exame, salva por minhas tão marcantes características: o drama e a hipocondria. Que me falte tudo nessa vida, menos esses dois.


a beleza de verdade

Tenho visto aqui e ali, e cada vez mais, protestos contra a ditadura da beleza; gente que está cansada de ser apontada, comentada, observada pela mira implacável de quem valoriza muito o envelope.
Também, em movimento contrário, bizarrices sobre a aparência; gente louca a fazer coisas inacreditáveis para enfrentar o espelho e os olhares alheios.

Nunca fiz plástica, por incompetência não consigo emplacar regime, mas sou completamente favorável que as pessoas façam suas moderadas gambiarras para se sentirem melhor.
Eu, por exemplo, passo hena no cabelo porque é muito grisalho e não gosto; se tivesse mais força moral estaria seis quilos mais magra; uso rímel para alongar os cílios e sou adepta à depilação. Pequenos atentados artificiais com o objetivo de dar uma ajudazinha à natureza.   

Acho estranho olhar calendário que tem como estampa pessoas gordas e no título a bandeira de ser “contra o padrão de beleza” ou “se amar e se aceitar” ou, ainda, “ninguém tem nada com isso”.
Tenho cá pra mim, pelo menos até agora, que isso acaba por sublinhar a necessidade do aceite da aparência, seja ela qual for. E nessa balada, acho que a barra deveria ser forçada para outro lado. Ao invés de concentrar esforços em mostrar as evidentes humanidades do lado de fora, que tal se essa ânsia convergisse para o lado de dentro?
Que tal um calendário com o que de melhor modelos gordas ou magras, feias ou bonitas, altas ou baixas têm? E o que de melhor as pessoas têm? Suas humanidades de dentro, espero eu.   
E se no lugar das imagens viessem frases, pensamentos, conceitos, vivências? Isso, vivências. Alguns caracteres a contar sobre alguma coisa que valha pensar quando a gente vira a folhinha e avança mais um mês...
Queria dizer isso, pronto, disse. E agora aguardo as metralhadoras, que me chegam sempre dos lugares mais inesperados.

deseconomia doméstica

de todos os meus eletrodomésticos o que não vivo sem é a máquina de lavar roupas. tudo menos ter que enfrentar o tanque. o aspirador de pó também está entre os queridinhos, mas não é páreo para a guerreira da área de serviço.

há alguns anos, grana curta, problemas grandes, minha máquina parou de funcionar. esse tipo de coisa sempre acontece nos piores momentos, se bem que sempre é um pior momento para evento desse porte.
as roupas todas a viver a orgia do cesto onde camisa se abraçava com vestido, calça fazia juras à meia, calcinhas assanhadas se exibiam para tímida blusa... e nessa promiscuidade sem nenhum tipo de contracepção, elas se multiplicavam. onde antes uma camiseta reinava, em poucas horas, duas, três, até quatro apareciam incontrolavelmente.
como não dava para reprimir a algazarra da roupa suja, também não era possível esperar por ventos melhores. fiz uma traficância no orçamento doméstico e chamei o técnico. 

ele chegou com poses de doutor. uniforme, maleta, ferramentas, olhar sério. me perguntou sobre o problema. eu não conseguia diagnóstico, fui direto à conclusão, que era também sintoma: não funciona. simplesmente parou de funcionar, sem aviso prévio, sem um gemido antes, sem nenhum sinal. só parou.
o senhor do inesquecível nome Alcebíades olhou para máquina, abriu a tampa e antes de reunir forças para removê-la de lugar, quis testar. eu ainda avisei mais uma vez sobre a inutilidade daquela ação, enquanto girava os botões e apertava-os como quem conversa com um bicho de pelúcia: é bicho, tem formato, mas não vive.
ele me pediu licença, buscou o cabo de energia e ligou a branquinha na tomada. movimento quase instantâneo, a obedecer a velocidade da luz, a máquina começou a se encher de água.

era esse o problema, estava fora da tomada e eu, ligada em 220, nem me dei conta do pormenor, mas a conta da visita do Alcebíades ficou ecoando na minha economia doméstica...

lembrei da história por conta dessa tirinha que a Cassandra Szuberski dividiu em sua tl.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

confusão de sintaxe

Cada vez mais as palavras me pegam pelo som, só depois a revelação dos sinônimos. Há palavras que adoro, mas que não têm significado bacaninha. A outras sempre atribuo um pensamento bom, apesar de saber de sua intolerância com o bem estar. 

Por exemplo, radicais livres. Assim, no campo sonoro, não consigo conferir-lhe maldades. Combater os radicais livres me parece uma violência.
Outra, que até tem relação com esse primeiro conjunto, é oxidante. Não sei se é o lance do “cs” presente em palavras do prazer como sexo, saxofone, reflexão, mas gosto de falar oxidante com o contentamento de quem recita.

Há no meu vocabulário de simpatias patife, que se a decodificação não tivesse me contado sobre seu objetivo de adjetivo, eu seria capaz de usá-la como algo simples, ingênuo, despojado: Minha tia, tão patife, sempre me esperava com bolo de laranja quentinho.   

Tenho também as palavras divertidas. Macarrão é uma delas. Não consigo falar macarrão sem sorrir. O que tem de almoço, mãe? / Macarrão, respondo com amabilidade na boca, não pelo prato, mas pela palavra.
Outra que vem acompanhada de um mostra-dentes é chaminé. Pura diversão dizer ou ouvir chaminé.
Só mais uma desse campo, helicóptero. Esse encontro consonantal me faz gracejo.

Por galhofa também gosto, as vezes, de deslocar as tônicas: melódia, Ronaldô, harmônia, isonômia. 

Tem as que falo, sabe-se lá por que, separando em sílabas. Coisa pausada, a parecer professorinha primária: ma-te-má-ti-ca, fe-li-ci-da-de, Do-mi-ti-la, ca-na-via-al.

Por conta dessas coisas que me assaltam de vez em quando, tenho vontade de escrever um texto só de som, sem significado. Uma coisa tipo aquela música do João Donato e Gilberto Gil, “A Rã”, saca?
Mas acho que isso não é possível, a minha vontade de não dizer nada periga me colocar num imbróglio de difícil explicação: Nessa melódia, a patife da Do-mi-ti-la subiu no helicóptero com os radicais livres e comeu todo macarrão que estava na chaminé.
Camisa de força e diploma picadinho na certa.


quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

carnaval

não sei dizer se algum dia gostei de carnaval. me chegam uns pensamentos de alegria forçada, coisa encomendada, espécie de obrigação de data. há um encargo de sorrisos e cores no carnaval.
acho que nunca morou em mim alacridade de tal tamanho que fosse capaz de me fazer, com sinceridade, cantar, saracotear, viver intensamente os dias determinados.

minhas emoções são um pouco rebeldes. lágrimas me escapam quando não quero, cena trivial me comove e as vezes uma grande tristeza externa não me diz muito. por isso tenho dificuldade na entrega planejada.

um momento de sonho pra fazer a fantasia de rei ou de pirata ou jardineira, pra tudo se acabar na quarta-feira? não, isso nunca deu pra mim. não posso começar uma fantasia, uma alegria, um mero sorriso com a informação de que tudo se acabará daqui a pouco. um sorriso, uma alegria ou uma simples fantasia, só se for para sempre, mesmo que o sempre se encerre ali, logo depois da primeira curva.
a notícia prévia do enterro me ofende.

outras coisas do universo do carnaval me incomodam muito e quase todas podem ser condensadas na palavra vulgaridade. as roupas, a bebida, o comportamento, as músicas.
gosto de manter alguns pudores, uma decência mínima. coisa de um recato público permanente, as liberdades só em sessão privada.

forcei-me algumas vezes ao carnaval. diversas modalidades, nenhuma deu certo. não é a minha. mas gosto de olhar os desfiles pela TV, torcer pela Império Serrano e acompanhar as notícias relacionadas ao Garibaldis e Sacis – uma de minhas tentativas.

lembro-me menina, bailes infantis, uma certa farra em fazer montinhos de confete para encher as duas mãozinhas e jogá-los pra cima, como quem entra num rio de água muito gostosa e comemora.
também era a época permitida para colorir o rosto com as maquiagens das gavetas da penteadeira, mesmo que não tivesse vontade, me pintava, só para não perder a chance.
tenho ainda a recordação da mais gostosa das sensações daquele tempo, quando o baile acabava e saíamos do salão, eu meio surda, a retornar ao meu mundo muito particular, dentro daquele zumbido que a música alta e contínua deixava no meu ouvido. minha solidão se refazia, me devolvendo a dignidade de poder ouvir meus próprios silêncios.

no caminho de volta, os confetes iam se desgrudando de mim, a deixar um rastro que hoje acho que era o trajeto de todas as lembranças que agora visito.