quinta-feira, 31 de julho de 2014

com os pés no chão


Não sou do tipo que tem loucura por sapatos. Tenho muitos, não direi quantos, porque vai parecer que sou centopeia fora de controle na Barão de Teffé. Mas não sou do tipo que tem loucuras por sapatos, talvez do tipo que tem tempo para escrever sobre eles.

Todos os meus pares preenchem requisito básico: conforto.

Nunca suportei nada que me aperte os pés, faça bolhas ou me coloque a pisar meio de lado. E quando digo nunca, quero dizer nunca mesmo.
Criancinha, dois, três anos, quando minha mãe e o doutor concluíram que eu tinha que usar botas ortopédicas, as escondia e pulava descalça pra grama, a correr e me maravilhar com a liberdade de poder voar com os pés no chão, um dia eles desistiram.
Menina, tinha horror às sapatilhas de balé. Elas me machucavam, grudavam os meus dedos uns nos outros, enquanto eu tinha que fazer cara de ser pleno, etéreo. Depois de muitos anos de tortura, convenci a família que eu não levava jeito para aquelas pressões e expressões.
Mocinha, enquanto minhas amigas se equilibravam em saltos, eu ia muito bem com meus Bambas e alpargatas. Não ligava para as vistas, precisava de naturalidade para ser e eram os solados de borracha colados no térreo que me davam isso. 
Adulta, era hora de me adequar às normas sociais e ter sapatos. Ocasiões formais pedem seriedade. Lembro da minha irmã às vésperas do seu casamento chique e o pânico que eu, madrinha, aparecesse por lá com meu All Star azul velho de guerra; resolvemos o impasse com troca justa: calçaria altas sandálias em troca da permissão para ser chofer do carrão que a conduziria ao altar – me diverti muito na nave automática e cheia de salamaleques com uma noiva nervosíssima no banco de trás. E soube desfilar, me equilibrando elegante, pelo corredor de olhares e pista de dança.  

Hoje, mais livre das formalidades e com poder para decidir o destino de tarso, metatarso e falanges eu continuo com o mesmo pensamento de quando tomei consciência da obrigatoriedade de sapatos: nada, nadinha, pode me apertar ou me deixar desconfortável. De Havaianas a Sete Léguas, eu preciso ter os pés livres para voar.  


quarta-feira, 30 de julho de 2014

do limão, limonada



Eu nunca havia levado bolo. Inaugurei a nova sensação no sábado. Ai como é triste ser esquecida...
E como se não bastasse, hoje aconteceu de novo. Acho que o sucesso em compromissos particulares e sociais chegou ao fim e o que era para ter acontecido de forma espaçada na vida, veio à galope, de uma vez só.
Talvez as pessoas tenham um número X de dribles para levar durante a vida e como eu não tinha dado nada à minha quota e as folhas do calendário se apressam, então chegou a hora de acertar os ponteiros.

Mas hoje, por conta disso, sentada no restaurante da minha vida inteira, pude fazer coisa que há semanas não tinha oportunidade: olhar o mundo, os mundos. Cada mesa um universo tão particular que as vezes dá pra duvidar que fazemos parte da mesma espécie e ao mesmo tempo tão igual, que é fácil acreditar que não há diferenças entre os homens.

Da minha mesa de sempre, do meu lugar desde os primeiros dias, na companhia dos meus infalíveis garçons, a incrível experiência de abrir os olhos e ver. Gosto de pensar que o São Francisco é minha Aracataca, lá, e só lá, a fantasia é verdade o tempo todo.
O amontoado de tipos e situações refletindo toda humanidade, em meus, já decretados, cem anos de solidão: homem de peruca, galã de outros tempos, fila na porta, teto roído por cupim, executivo apressado, jornal dobrado a fazer companhia ao homem que almoça sozinho, sorriso do rapaz que flerta, toalhas verdinhas, trabalhadores que passam, leitura do cardápio na porta, moça de saia curta, rapaz de outros bares, conversa sobre futebol a oeste e sobre política ao norte, engordurados óculos do Seu Valentin, bigode de Ruy Barbosa, mulher de riso fácil, funerária do outro lado da rua, sol que bate na calçada, o Zé a contar da vida, das vidas e jurar aposentadoria para o mês que vem. Maravilha de diversidade.

Que belo e estranho dia pra se ter alegria!

O Seu Valentin, em foto de Hugo Harada para Gazeta do Povo

terça-feira, 29 de julho de 2014

eu hein, Rosa


Como é que chegamos aqui? Que mundo mais chato esse! Quase tudo proibido. Quase tudo é imoral, ilegal ou engorda. E ser imoral, ilegal ou gorda parece que não pode...
Ou melhor, ser gorda pode. O que não pode é usar a palavra gorda, ou querer emagrecer, porque cada um, agora, tem que se aceitar como é – mas sem comer bacon ou gordura trans e fazendo exercício com três litros de água, no mínimo, sendo renovados a cada 24 horas.

A gente não pode mais usar a palavra preto para falar da cor de alguém. É ofensa. Há terminologias específicas para isso e não importa se você respeita ou não a pessoa, o que interessa é falar direitinho.

A discussão política se tornou assunto perigoso nas rodas. Se é contra o PT, imediatamente é tachado de reacionário, a favor da ditadura militar ou elite-branca contra os pobres.

As piadas foram proibidas. Nada de bom humor, tiração de sarro ou apelidos. Tudo virou ofensa, afronta ou bullying.  

Se traz as compras do mercado nas sacolinhas plásticas, corre o risco de ser o responsável por explodir o planeta. Se deixa um restinho de comida no prato, é a prova de que não se importa com os mais pobres. E se compra um vestido novo, é sinal de que o consumismo lhe pegou. Mas você não pode, de jeito nenhum, ter um celular, é imprescindível ter smartphone para ficar com o pescoço virado pra baixo quando entra no elevador e não cumprimenta o vizinho.
O legal é contar para o mundo, via Facebook, que está acordando, indo dormir, comendo sushi ou viajando para Tatuapé, mas sem encontrar ninguém pessoalmente; mais vale um checking. Ou se indignar com as atrocidades planetárias, ficar comovido com quem não conhece e pedir paz no mundo, se quiser estender a mão para um colega de trabalho e lhe perguntar sobre sua vida e dificuldades, imediatamente vira um intrometido desagradável.  

Vaias, palavrões, xingamentos e gritaria na arquibancada do futebol? Sinal fechado para isso: os adversários merecem apreço, tem que ter respeito com a mãe alheia, há famílias, crianças no local.

A velhice, com todas as suas dores e desgraças, incluindo a miséria da aposentadoria e a falência da previdência, virou melhor idade e lugar para depositar os filhos enquanto pais e mães frequentam academias e baladas. Mas é muito legal fazer um post com figurinha sobre o dia da avó.

Gosto não se discute mais, só temos a imperar mau gosto. A música vulgar que toca alto, muito alto, nas lojas, mercados, ruas é horrenda, insultante, mas se reclamar, criticar, pedir pra tocar ou diminuir o volume, você é esnobe. Não é fácil comprar roupa que não tenha estampa de bicho, strass ou cores extravagantes; a preferência por uma peça discreta, neutra ou lisa é mais rara que um tênis sem ter cor neon.

Você leu esse texto até aqui e conclui que ele está pra lá de batido e que sua leitura já não faz mais sentido nenhum? O legal agora é escrever sobre escritores que morreram ou sobre as guerras no mundo ou qualquer coisa mais atual e menos rasa? Ah! Dane-se, seu chato! O blog é meu e eu falo do que eu quiser!


domingo, 27 de julho de 2014

primeiro o fubá, depois o dendê



Nunca achei que fosse lá grande coisa como dona de casa. Mesmo assim, trato de aspirar tudo, lavar a roupa, tirar o pó, espalhar perfumes delicados pela casa e tudo que é necessário para que o prazer sempre fique aqui dentro.

Hoje recebi telefonema de amiga que não vejo há muito. Do outro lado da linha, as novidades e o pedido:
- Muita saudade da sua comida... se eu estivesse por aí, ia pedir pra você fazer um feijãozinho pra mim.

Não me arvoro em grandes preparos no fogão. Estou mais para cozinha medíocre do que pra mestre cuca. Por isso fico tão espantada com os pedidos que não são raros de almoço, jantar, café e afins aqui em casa.
No outro lado da moeda está a satisfação de preparar a mesa para aqueles que gosto. Alguém já disse, em algum lugar, que cozinhar é um ato de amor. Acho que é mesmo.
Estar na cozinha é doação, é querer o prazer do outro, é agradar, atender, louvar. As competências para isso não estão no antigo livro da D Benta ou nas receitas do Anquier.
A cozinha pulsa dentro do peito.

Uma refeição é também feitiçaria, muda humores, conversa com o corpo e alimenta a alma. Em algumas vezes, entre consistências e sabores, pula para um prazer quase erótico.
Desconfio muito daqueles que não se entregam aos agrados da mesa com honraria e realeza, com calmaria e fineza, com todos os sentidos.

Ah! E que maravilha pensar no Vinicius a elaborar comidinhas para depois do amor. Ou a Babette a causar espanto com seus poderes de bruxa do bem naquela vilazinha maluca do filme.

Aprendi que a boa mesa se faz com os ingredientes mais caros (que não estão no mercado) e a dividimos com quem gostamos. Aqui em casa é assim.


3 X 4


Sylvia,

Se eu fosse pessoa crente na existência do destino, atribuiria a ele a sua vinda para minha vida.

Quando estava às vésperas de conhecê-la, poderia acreditar em tudo, menos que seríamos, de fato, amigas.

Fomos apresentadas em condições convencionais na teoria, mas com poucas possibilidades de dar certo na prática. A ponte que nos conduziu uma a outra era frágil, pouco confiável.   
Mesmo assim, em curtas horas nos reconhecemos amigas e nos soubemos incrivelmente parecidas em algumas coisas e completamente díspares em outras.

Sylvia, as vezes eu fico aqui pensando em você, nas suas coisas, nas adversidades que bordaram sua vida e me emociono com o resultado. Você bem poderia ser pessoa amarga, difícil, insuportável – seria fácil explicar. Mas ao contrário disso, você se dispõe à vida, ao aproveitamento dos instantes que têm importância, é entregue aos amigos e enfrenta tudo com a coragem necessária para exercer a honestidade nessa selva tão injusta. Sem contar seu olhar para passarinhos, flores, paisagens e mar, muito mar (e essa coisa louca de pranchas e bicicletas!).

Não fui até aí para bebericarmos juntas daquele nosso uísque tão louvado, do que me arrependo até meu último fio de cabelo. Deveria ter dado um jeito e atravessado os dois estados que nos separam para abraçá-la e declarar pessoalmente a admiração que tenho por você.

Sei que ainda teremos muitos encontros, aqui, aí, em Santa Teresa e onde mais planejarmos, quando quisermos, assim que inventarmos. Enquanto isso, vamos trocando diariamente, entre figurinhas e oks, nossas maravilhas e indignações. 

É um grande presente poder contar com sua fortaleza moral e seu coração de manteiga. 

Ah! Nunca é tarde para falar sobre isso também: de todas as minhas amigas, você é a mais chata e encrenqueira! E é também a que conserva nas maneiras mais íntimas a educação mais polida e sofisticada. Amo!!! 



sexta-feira, 25 de julho de 2014

tempo


Não brinco com o tempo.
Já sei como ele é: rápido no gatilho, traiçoeiro, não espera a gente contar até dez para puxar arma e disparar.

Apesar de sua natureza ser assim, tão indomável, procuro tratá-lo bem, com carinhos, atenções, planejamentos.

As vezes consigo enganá-lo e faço duas, três, quatro coisas numa vez só. Quando dá certo, comemoro. Quando ele descobre, me castiga, exige que eu descanse e lá se vão algumas preciosas horas pelo ralo.

Aprendi uns truques para aproveitá-lo melhor: se estou enfiada num congestionamento imenso, aproveito para escutar disco novo, reparar na paisagem, gravar pensamentos, saber das notícias, tirar sobrancelha; na sala de espera do médico, eu termino o livro, respondo emails, leio o jornal; a fila do mercado me serve para reparar ao redor, escrever os planos da próxima viagem, dar uma conferida nas capas de fofocas. E assim por diante.

Cometo também o que muitos chamam de perder tempo e que eu acho que é ganhar: tenho lugar preferido na cidade, é silencioso e solitário, gosto de ficar lá uma ou duas horas sem fazer nadinha, sem acumular função, sem leitura, sem telefone; só fico, deixo que os ponteiros girem e que o pensamento fique solto para se largar pro lado que quiser.

Sei que meu tempo é muito bem aproveitado quando converso com meus filhos, quando recebo os amigos, quando brinco com o cachorro, quando o gerente do banco concorda comigo, quando ouço pela trigésima vez a mesma história que meu pai conta, quando o jantar fica pronto.

Agora, o tempo excepcionalmente bem aproveitado é aquele que fica na cabeça, não de um evento marcante e grandioso, mas de um dia qualquer, no meio do calendário, que se solidifica para sempre nos cartões da memória como prova de uma época inteira. Para os dias especiais assim, o tempo se multiplica e se refaz toda vez que eu fecho os olhos e volto a ele: como era bom brincar no sítio da tia Sofia!


Com música fica assim.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

planos



a minha amiga Susana Volpi escreveu assim, eu gostei:


Abri a porta e meus olhos brilharam nos dele. Flores. Buquê imenso de gordos botões vermelhos na mão esquerda. Com a direita enlaçou minha cintura e me beijou. Rodopiei o corpo e me larguei.

Sentados na sala, ouvi suas histórias e ele perguntou sobre as minhas. Desenhamos os planos para próxima viagem. Paris nos esperava. E seria primavera e passearíamos abraçados e tomaríamos champanhe e veríamos o sol nascer e o sol se pôr todos os dias e todas noites, daquela sacada que é nossa e que carregamos para todos os lugares. Planejamos também as horas de avião e enfileiramos os assuntos e segredos que gastaríamos pelo Atlântico.

Trabalhando na cozinha, ele me contou do seu dia e perguntou sobre o meu.

Escrevemos o cardápio do próximo final de semana. Os amigos viriam. E tomariam vinho e comeriam os pãezinhos que ele sabe preparar e serviríamos a velha receita da sua mãe e arrumaríamos a mesa com as melhores taças, aquelas que em brinde levantamos sempre em nossos piqueniques.

No elevador do prédio, paramos em todos os números. Tempo para a febre do corpo e os beijos desesperados e as juras de eternidade. Marquei minhas mãos no espelho, enlaçamos as pernas e quando já não existiam mais andares, ainda nos beijávamos. E juramos ficar juntos pra sempre.

Já na despedida final, ele confessou que sabia sobre tudo, que podia tudo, que queria tudo. Sacou a caixinha do bolso e fez o pedido.

Nem a chuva ou o vento, nem o medo ou o espanto, nem a covardia ou a surpresa me impediram de responder.



incompetência



Eu queria muito escrever um poema de amor, que arrancasse suspiros do mais amargo dos corações, que fizesse o mais descrente dos homens sorrir. 

Queria poder riscar o papel com um sentimento tão puro que ele escorresse molhado, suado, vibrante em letras roucas e voz trêmula.

Queria poder dizer do tamanho do meu amor e da dor da minha saudade e que isso fosse tão claro e natural como um passarinho que bate asas e voa. 

Queria que meu poema calasse o silêncio e despertasse as mais belas palavras da língua humana, daquela que fala para todos de um único jeito. 

Queria que todos os amantes do mundo se valessem do meu poema para contar das profundezas de seus sentimentos e que cada um deles lhe acrescentasse uma palavra nova, para que ele continuasse crescendo numa corrente universal. 

E mais, queria que quando meu poema fosse lido, a terra parasse, o tempo fosse engolido e, durante os instantes que durassem minhas palavras, só elas houvessem no mundo.  

Mas acho que esse calor que insiste em mim queima a folha – brasa única que termina tudo antes de começar...  



quarta-feira, 23 de julho de 2014

quarta-feira



Bem no meio da semana, uma quarta-feira. Desengonçada, boba, meio-termo. Não serve nem pro começo, nem pro final da jornada.

Se colocou aqui no meu calendário como terceiro dia, apesar da esquizofrenia desse nome. Reclama para ser dia útil mas se exibe assim, cheia de sol, de azul, de convite.

Uma das obrigações inevitáveis para essa quarta qualquer é ida à feira, começa às sete, termina onze e pouquinho. Pastel, pamonha e queijo desobedecem a ordem e se instalam como pecadinhos permitidos em dia de trabalho.

Outra visita irremissível é à conta bancária. Pacote de chuchu de um lado, sacola de laranjas de outro e embrulhos coloridos e cheirosos provavelmente me deixarão presa na rotatória da agência. Tentarei pedir clemência ao segurança, hoje é quarta-feira, por favor, me deixe entrar. Duvido que ele tenha essas sensibilidades.

Teve uma época que quarta-feira era dia de bilhete barato no cinema, não sei se isso ainda existe. Mas essa é a prova de que a semana repete, folhinha após folhinha, essa data de pasmaceira, em que é preciso esforços para se fazer viver, para não desistir da luta.
Pra variar, e pra esculhambar, o domingo podia cair numa quarta!

Quando a data é especial, há cinzas. De Fenix, de Bennu, de Quaresma, de ramos... mas essa é uma quarta qualquer, quarta de formiguinha, que insiste, que chicoteia, que coincide com o 23 e com a superação da preguiça. 

Como Mercúrio demora quase 88 dias para dar uma voltinha em torno do sol, tenho a impressão de que miércoles deve ser o mais rápido dos dias... por isso, é bom parar de batucar e tratar da vida, antes que seja quinta...


terça-feira, 22 de julho de 2014

fundas piscinas de ilusionismo... – mais nada


Sou um tipo banal, corriqueiro.

Ordinária, entregue a pequenos prazeres. Não penso em grandes conquistas, não almejo fama nem glórias.

Quando tinha idade de querer dominar o mundo, não levei muito jeito pro assunto e de derrota em derrota fui arrumando forma de não me contundir em cada nova empreitada. E essa maneira resultou em desistir das grandes capturas.

Virei uma simplória e meu prazer migrou para observação do que já estava conquistado: ouvir o canto dos pássaros, tomar banho de mar, admirar tramas de crochê, ler belos poemas, ver flores coloridas, conhecer música boa. Nada que dependesse exatamente da minha execução, só da minha vigilância e atenção.

Há vantagens. Muitas. Cada fatia do mundo se torna uma aventura inesgotável de descobertas. Qualquer desconhecido é fonte de histórias, diversão e comoção. Uma cadeira? E me ponho a pensar no trabalho do artesão, nas ferramentas, na carpintaria, na escolha da madeira, no plantio, na derrubada. Levo horas a lembrar do pedaço de torta da padaria: ingredientes, processos, tempos, quantas experiências até chegar àquela consistência, quantas mãos tentaram o sabor perfeito; a história da culinária, quantos séculos de laboratório para que o cacau bruto se transformasse naquela maravilha de mousse...
Há uma meada imensa em cada detalhe do meu tão simples dia a dia. E esses fios que se embaraçam, se entrelaçam na história que a humanidade quase nunca conta me encantam e me absorvem horas de pensamento e pesquisa. Sou curiosa.

Descobri que o essencial para mim são esses pequenos prazeres, que as vezes vêm cobertos de filosofias e reflexões, noutras só tomam conta daquele pedaço que se maravilha sem exigir explicações. 

Gosto também do que é belo. Beleza construída pelo homem como uma sinfonia ou um bom corte de cabelo, uma escultura em pedra ou um terno bem alinhavado, um verso de Cecília ou uma porcelana Meissen. Beleza que já está pronta como um ipê branco no final do inverno ou uma lua nova com estrela de pingente, um temporal de verão com luzes no céu ou uma corredeira ligeira de um rio qualquer, um por de sol de verão ou o cachorro abanando o rabo.
O belo sempre acaba sendo pra mim espécie de profilaxia. Se há erros, medos e decepções no presente, há também as compensações para essas penas. As rosas para os espinhos.

Já foi ruim ser tratada como um tipo ingênua, tola, boba. Hoje, acho que essa papalvice é minha conquista e meu antídoto, minha linha de partida e chegada, meu precipício e proteção.  


sábado, 19 de julho de 2014

gira mundo



A cozinha está limpa, tem bolo a crescer no forno, meia-luz, silêncio.
A madrugada de domingo chega aos poucos, devagarzinho, a empurrar os ponteiros como se não houvesse tempo, não existisse pressa e a segunda-feira fosse um horizonte distante.
Charles Trenet comanda.

Penso nesse dia que foi embora, que já mergulhou num mar que nunca mais poderá ser navegado, que estava bem aqui, ao alcance das mãos, e fugiu rapidinho como fugirão todos.
O que levarei dessa data, é o que melhor representa a vida: encontros e despedidas, transitoriedade.

A casa esteve cheia. Os amigos vieram e as risadas forraram as paredes. Queridos, que eu não via há muito, desabaram nesse sábado lindo como a palavra azul para proporcionar a amizade e mostrar porque a vida vale todas as penas.
As antigas novidades, as surpresas, as incertezas do caminho, as bobeiras, os silêncios, as diferenças, as igualdades. A multiplicidade e a unidade em casa!
Encontro.

Lá pelas tantas soube que Rubem Alves foi embora. Não quis me afundar no assunto para não dar ares de luto à conversa, mas a espada me atravessou.
Despedida.

Nessa noite de solidão e calmaria, de desfechos de histórias vou, de novo, mais uma vez, repetidamente, novamente, tomando consciência do cais que é nossa experiência por aqui. 
Enquanto isso, o bolo cresce no forno, há tiros em Gaza, ondas quebram no Pacífico, dois amantes dormem sozinhos e um taxi espera no ponto. Gira o sistema solar. 



a beleza não elimina a tragédia, mas a torna suportável


A vida não pode ser economizada para amanhã. Acontece sempre no presente 
(Rubem Alves)

Aprendi muitas coisas com Rubem Alves.
Nos livros, nos encontros, nas conversas. Aprendi em seus olhares, suspiros e silêncios. Aprendi sobre educação e deseducação de crianças, sobre cabeças adultas, sobre a velhice, sobre a aproximação da morte, sobre as ameaças da vida...
Ele era uma pessoa feita de bons princípios e cheia de amor ao próximo. Homem de praticidades também: enquanto eu lhe mandava cartas pelo correio, ele me respondia por email. Eu pedia para ele escrever um artigo, ele sugeria gravar um vídeo. Pedi chá à tarde, quis abrir uma garrafa de vinho.

Quando o conheci pessoalmente, fiquei maravilhada com a sua presença. Prisma.
Vidrada, olhos parados enquanto ele conversava e contava coisas cotidianas na roda. O tempo passando pela conversa e eu imóvel, com atenção absoluta em suas mãos, suas maneiras, seus modos de homem gentil e elegante. Depois de um tempo, ele foi me observando e prestando atenção na minha atenção contou simpática historinha:
- Um tempo desses atrás, entrei no metrô e uma moça ficou me olhando. Me enfiei na leitura do jornal dobrado, mas percebi que ela continuava me olhando. Dei um sorriso, ela correspondeu. Me animei, equivocado, com o flerte e me aproximei. Quando cheguei perto, ela educadamente levantou e me ofereceu o lugar: “O senhor quer sentar?”. Você está me olhando com os mesmos olhos que ela e eu já estou sentado...

O Rubem tinha bom humor, era rápido de raciocínio e surpreendente em comentários. Todas as oportunidades que tive de estar com ele foram prazerosas, encontros significativos que me enriqueceram e sempre, sempre, sempre me acrescentaram novos pensamentos: Trem Noturno para Lisboa, psicanálise, Vermeer, Agostinho, flores, direção perigosa, solidão e uma infinidade de assuntos – todos bordados por seus pensamentos construídos num misto do que aprendia nos livros e do que vivia e observava.

Há alguns anos, perguntei se tinha medo de morrer. “Não, Adriana, tenho pena de morrer”. É uma pena mesmo!

Rubem, foi um grande prazer tê-lo conhecido!

aqui em casa, lá na casa dele e passeando em Campinas


sexta-feira, 18 de julho de 2014

mesmo assim o céu está azul


"Um homem não é outra coisa se não o que fez de si mesmo."
 (Jean Paul Sartre)

As vezes fico meio encafifada com a palavra destino, no sentido de fatalidade a que estariam sujeitas todas as pessoas e todas as coisas do mundo, como explica o dicionário.

Se eu endoidar e me levantar daqui agora e correr pelo meio da rua até encontrar sorte pior, seria o destino? Ou o meu destino é continuar trancadinha aqui no quartinho dos fundos a pensar sobre isso?
Será que qualquer coisa muda o destino – e assim decreta a falência dele? Ou não, o destino se cumpre e pronto?

Eu me inclino, existencialista, a pensar que cada um é dono da própria vida e das próprias escolhas. Sem mais.
Mas aí aparece uma barca imensa que carrega acontecimentos tão díspares que me trouxeram até aqui. Parece que ela se movimenta e mostra um mar quase inteiro em que o princípio e o meio fazem todo o sentido de sucessão, mas que também esse mesmo meio (que é onde estou) chegaria ainda que as correntes, marés e ventos fossem outros. É como se não importasse por onde eu passasse, estaria aqui, bem aqui, no quartinho dos fundos batucando esse montaréu.

Todos os meus esforços são sempre para viver o dia de hoje e o que ele me apresenta, sem pensar muito no que ainda não tenho, que é o amanhã...
Mas quando faço isso, é óbvio que de alguma maneira estou também semeando. Talvez essa falta de preocupação me trouxe até aqui sem casa própria, sem reservas, sem grandes medos. Só vim, uma primavera atrás da outra, crendo que o vento bata na vela e que faça florir amanhã.

Talvez o meu destino seja viver sem destino. Sem direção determinada, plantando e colhendo no mesmo dia.

Cuida que no naufrague en tu vivir, Adrianita!



quarta-feira, 16 de julho de 2014

letras de macarrão



E não é que eu quase fiz um poema?

A pensar sobre a condição tão imperfeita da minha existência que cisma em insistir com a escrita, passei a batucar tudo que me vinha à cabeça. Em versos. Sem métrica.

Papo vai, papo vem, tratei das minhas vontades. De praia, de sol, de casa, de sossego, de amor.
Falei também de passarinhos, varanda, viagem.
Sonhei bem alto com nuvens em terra firme e joguei os braços pros lados para abraçar o tudo.

O tempo correu pelo papel e fui surpreendida com as vontades do corpo. Sem censura. Sem rima. Transformei os desassossegos em palavras e me cobri com as flores da febre. Apareceram termos como saliva, pele, gostos, lânguidos e outros que nem ouso mais.

Um pouco mais de esforço e lá estava, diante de mim, meus desejos de agora e de depois, de antes e do futuro – que são só os desejos do presente. Tudo se espalhando em versos como testemunha de mim mesma.

Fiquei surpresa com o resultado.
Cadê? Piquei, porque prefiro continuar na prosa; não posso me dar ao desfrute de achar que escrevo poesia - no bucho do analfabeto, letras de macarrão fazem poema concreto



quarta-feira, 9 de julho de 2014

laranja madura, na beira da estrada, ta bichada ou tem marimbondo no pé



Ah! A Copa do Mundo no Brasil foi/é coisa belezinha... Me proporcionou momentos tão bacanas!
Desde menina fico louca na época do campeonato, quero ver tudo, saber de tudo, ouvir todas as opiniões, palpitar, assistir tudo que posso. Os comerciais são mais bonitos, as ruas ficam enfeitadas, as pessoas dispostas e os taxistas muito mais técnicos nas conversas. O país se exibe em maravilhas.
Torcedores brasileiros sempre falam em derrota, em merecimento de derrota e depois, vesgos, em frente à TV, se descabelam. Amor e ódio. Razão e emoção. Um milhão de bobagens, de contradições e absurdos. É bom quando a gente se permite...

Mas dessa vez, tudo foi tão diferente... Foi muito diferente! A começar pelo “não vai ter Copa”, passando pelo “imagine na Copa” e por fim, “esse time não serve pra nada”.
Ora bolas!, teve Copa, foi bacana e esse time serviu para nos esclarecer várias coisas. Não falarei aqui sobre tudo que está exposto nos programas esportivos sem-fim que rolam por aí, a falar do tosco do Scolari, do Marin, de teimosia, de grana, de combinações, acertos e falcatruas.

O nosso ópio tem papel importante e se nos distrai da realidade, é só porque ninguém consegue viver afundado o tempo todo em problemas cotidianos.

Um instante, maestro! O circo também tem valor!

Pessoalmente, a Copa me deu mais alguns cabelos brancos e rugas, boas risadas, grandes encontros, conversas prazerosas, leituras divertidas, bom humor, mau humor, apatia, reflexões, informações sobre outros países, informações sobre o Brasil.

O que veio para o coletivo, sobre robalheira, desvio de grana, condutas duvidosas, revoltas sobre como as coisas são feitas por aqui, não se apaga agora, é o jogo novo que está começando e faz parte da vida cidadã, fincar os pés na realidade e avaliar tudo isso. O momento para isso é exatamente esse.

Pode ser que só o recorde sete a um tenha o poder de dar pesos e medidas no tanto de distração que precisamos para enfrentar o que temos que decidir agora. Desabar na realidade, como disse a Iara Teixeira, tem lá sua utilidade...
Sem o alucinógeno não há máscara nem ilusão: há muita gente que depende de um jogo sério e bem pensado - e não é de futebol que estou a falar agora.