quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

haverá paradeiro para o nosso desejo?

Eu fiz um plano para minha vida. Há anos o acaricio. Minhas melhores músicas são para niná-lo. Meus versos definitivos, para saudá-lo. 

No meu primeiro dia de lucidez, revirei os olhos, pintei tela e resolvi sonhar. Sonhei um sonho só. Não conheço outro. 

Nesse caso nunca tive pés fincados. Deixei o vento soprar, fechei os olhos e vi o melhor cenário, aquele, de fadas. E flutuei tanto que muitas vezes quando acordei, surto de realidade, percebi que nunca terei recursos suficientes para misturar o que é do ar com o que é da terra. Frustração. 

Talvez, além de dinheiro, me falte disposição e disciplina. Bom seria se o sonho se realizasse por ele mesmo, por sua beleza e por minha vontade. 

Eu sei quanto custa sonhar. Mas sei como sai caro viver acordada. 


Um dia desses vi um lugar e pensei que lá o meu sonho poderia se instalar e virar  matéria. Sem grana, nem quis saber valores. Saber isso poderia matar o meu sonho. E eu não quero que ele morra. 

Ainda que a consciência me persiga a me chacoalhar a cada instante, eu acho bom ter um sonho. 
Meu plano de vida se transformou em linha do horizonte. Ando, ando, ando e estou sempre longe. Mas ando.  E no caminho descubro coisas, conheço pessoas, amanso o coração. No trajeto reafirmo vontade, coloco a cabeça para funcionar, coleciono possibilidades. 
Talvez seja o percurso coisa mais interessante que a chegada. Mais que isso, talvez minha vida seja o percurso, a tentativa, a vontade e nunca a chegada...


Ironicamente, esse movimento todo é para alimentar um sonho chamado Pousada.


terça-feira, 3 de dezembro de 2013

vim parando por aí...


Colecionei bobagens em baús e abri gavetas mofadas para que fantasmas pulassem. Ataquei-os.

Descobri mistérios, desvendei segredos, criei enigmas. Andei, pé ante pé, ao ladinho de precipícios, joguei fora a sombrinha, escorreguei.

Caí, levantei, repeti.

Construí realidade paralela. Comprei passagens. Descobri outro mundo. Ganhei presentes.

Aprendi lições, ensinei outras, tornei a aprender o que ensinei e esqueci o que aprendi.

Voei perto de estrelas. Rastejei em terra seca. Cavei buraco. Afundei no poço.

Tomei impulso. Desci ladeira. Saltei tobogã. Pedalei milhas.

Cansei, descansei, repeti.

Não sei mais de onde vim, nasci, cresci. Esqueci tudo que fiz.

Não tenho planos, desenganos ou esperanças. Sou só. Só sou.

Estou aqui, geografia alterada, caminho trancado, grades no coração. Provoco novos amores, deixo cair vidros que se espatifam no chão.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

do amor que não se repete - e se repete sempre.


Eu tive muitas mães na minha infância. Uma rua inteirinha de mães que me chamavam pelo nome, pelo apelido, pelo sobrenome, pelo nome dos meus irmãos, dos meus colegas, me chamavam por a filha da Reny, a filha do Paulo.

As mães da minha infância eram minhas e de toda a rua. Brincávamos livres: bola, bicicleta, rolimã, bets, conversinhas, esconde-esconde. E todos obedecíamos em uníssono ao toque de recolher da primeira que chegava à janela e anunciava o relógio, o fim da zoeira. Desmontávamos cenários, carregávamos objetos e seguíamos... cada um para a própria casa, a obedecer a própria mãe que tinha ordem igual a qualquer outra: banho, jantar, dentes e cama.  

O nosso respeito era igualzinho para todas. Cada uma tinha total autoridade sobre nós. As ordens pareciam vassouras gigantes que empurravam toda gurizada de um único jeito. Fomos, na rua da minha infância, todos criados iguais. E quando um assunto grave era denunciado, uma perna quebrada no futebol, um bêbado rondando a rua, um vidro estilhaçado por bola, as mães logo se reuniam para discutir providências e anunciar nosso novo modus operandi.

Cresci. Crescemos. Cada um buscou a própria vida.

Hoje sou mãe de um casal. E tenho muitos outros filhos e filhas. Não há mais brincadeira na rua, mas nas primeiras horas do meu mais velho, eu e todas as mães organizávamos a bagunça no condomínio e cabia a cada uma de nós, e a todas, zelar pelo bem estar da turminha. As preocupações maternas se estendiam por todos aqueles que tinham altura parecida com a do Dé. Quanta preocupação com todos eles...
As amigas da Lívia viraram minhas filhas e sempre estou a pensar nelas também, no presente, no futuro, a desejar que a vida lhes seja boa e a tratar de conselhos e falas quando necessário.

Melhor é saber que os meus filhos também tiveram e têm muitas mães. O Dé já tem idade suficiente para não precisar dessas batutas, mas a Lívia ainda dança conforme nossa música. E hoje, quando preciso de cuidado especial, fora do meu controle, passo a mão no telefone e converso com a mãe substituta a entregar a cria com a certeza dos mesmos cuidados.

Mãe só tem uma e todas são iguais e são mães de todos...


terça-feira, 26 de novembro de 2013

o gás que embala o balancê


Eu gosto de ouvir pessoas que sabem sobre o que falam. Sabem não só o saber teórico, lido e aprendido; sabem o saber vivido, sentido e transformado.

Acho que os jovens são assim. Lêem uma coisa aqui, escutam outra ali, compram um livro acolá, levam essa rotina em meio a vida: vão ao parque, ao cinema, ao show, à livraria, ao bar, ao teatro, à festa... tudo a se misturar, a formar os saberes, a mesclar e relacionar aprendizado com vivência.

Os jovens têm a disposição física para jornadas inacreditáveis: depois de livro imenso, um filminho para descansar e tomar fôlego para assistir espetáculo. Ou depois de um papo inesgotável com os amigos, as leituras para a faculdade antes de sair para o cinema. Ou depois das compras na livraria, a imersão na poltrona para leitura, em seguida, os planos de viagem.

Respirar ar puro, tomar sol, conversar com os amigos, observar as gentes, entrar no mar é tão importante quanto se enfiar por dias a fio em bibliotecas, ler todos os jornais, se informar sobre a história da humanidade e fazer cálculos grandiosos.

A vida vivida de verdade. A plenitude dos sentidos. Nenhuma verdade definitiva, tudo em aberto.

É a construção de novo balancê, entre 8 e 80 há finas-flores para serem plantadas e colhidas o tempo inteiro. Os jovens sabem disso – os que eu conheço, sabem.   



sexta-feira, 22 de novembro de 2013

flecha preta



sobre toda estrada, sobre toda sala 
paira, monstruosa, a sombra do ciúme

Lá em casa definiram os filhos assim: o irmão mais velho não tinha sentimentos menores; a do meio era o tipo boazinha, afogava toda e qualquer mesquinharia nela mesma; a caçula tinha direito a gritos de ciúme.

Nem sei se éramos assim ou se aprendemos de tanto ouvir. Até hoje não sei direito o que era forma e o que era massa na casa da minha mãe.

Eu sou a sem definição: nem o primeiro nem a última. Cresci na solidão do espelho. Correr pra dentro e abafar sempre foi uma de minhas especialidades. Não tenho grandes queixas disso –  aprendi bem a primeira lição.

Na adolescência estava muito preocupada com as praticidades: queria ser independente, vida própria, ter minha casa,  ser dona do meu nariz, regente de minha música. Não tive tempo para revoltas.

Quando o tempo passou um pouco eu estava lá, no meu objetivo, a temperar almoço, a ganhar o pão, a cuidar dos filhos. Não tinha tempo nem ânimo para pensar em sublevação.  

Um dia desses, a conversar feito adulta com minha mãe confessei que sou pessoa ciumenta. Disse que meus olhos ardem, que o sangue ferve, que a dignidade se esvai em ciúme. Citei mil dores de cotovelo.
Mais, contei das minhas verdades de liberdade. Do jeito que acho a vida e como o ciúme não cabe nela. Repliquei todos os argumentos com frases cruas, teorias de pára-choque, letras bobas.
Joguei tudo em tom de rebelião. Só faltou queimar os colchões da casa. A imaturidade que empilha os consultórios... precisava que ela me libertasse para o uso do sentimento. Citei fatos, pessoas, vontades. Também disse que não gosto que sintam ciúme de mim, não gosto de sentimentinhos perto de mim. Falei, falei, falei até perder o fôlego e a cor. Até recuperar a razão.  
A redenção não chegou, ouvi sentença estranha: “Você sempre foi assim, filha. Parece que tem ciúme, mas na verdade não tem. Não pense nessas coisas...”. 


segunda-feira, 18 de novembro de 2013

a onda que se ergueu no mar...


Encontrei a solidão. E ela era sem cor e dura e feia e forte. Estendeu-me a mão, seca e áspera. Convidou-me para dançar e sua música era suave e seus passos tranquilos e ela me fez flutuar...


Nos entendemos bem, formamos par: dupla inseparável, proteção mútua. Eu sabia, ela não deixaria que a vida me distraísse, que o mundo girasse, que o corpo tivesse calafrios. E eu a respeitaria, protegeria, a guardaria a chaves, cadeados, correntes, redes, lençóis.

A solidão me deu presentes: livros, músicas, silêncios, calmaria, quietude.

Um dia, sem aviso nem convite, o amor chegou. Fez confusão, abriu todas as portas, destrancou os medos, libertou as vontades e rompeu nosso acordo. Tratou de nos separar.

O amor era colorido e tinha linhas diferentes, sorrisos, animação, sol, estrelas, concentração. Água fresca. O amor me seduziu porque me fazia sorrir, porque me deixava cantar e porque me desvendava para o outro, o próximo, o mais próximo.

O amor permitia a divisão e a vontade. A liberdade e a prisão. O sim, o sim, o sim.

Confiei no amor e em suas promessas. Traí a solidão e me entreguei a esse novo parceiro.

Descobri que o amor também é onipresente, acompanha e preenche todos os instantes, os espaços. O amor invade a alma. E gosta do perigo: corda bamba, beira de precipício, olhos nos olhos, corpo em chamas, passarinho solto.   

O amor não deixa espaço vazio. E quando a solidão tenta se aproximar, ela já não tem boa música e incomoda e atrapalha e perturba e enlouquece.

A solidão fica ali, escondidinha, a espiar. 
O amor não pode esperar!




quarta-feira, 6 de novembro de 2013

un caballero de fina estampa...


Filho,

Já aconteceu muita coisa em nossa incomum vida em comum:

futebol, espera por sol, basquetebol
hospital, mau humor matinal, temporal
drama, falta de grana, organograma
bar, banho de mar, troca de par
almoço no carro, tiração de sarro, peito com catarro
fratura, aventura, criadora e criatura
descoberta de lugares, vestibulares, compras em bazares
faxina, rotina, comercial de margarina
desminto, distinto, labirinto
briga, invasão de formiga, mastiga
maracanã, você vai ter uma irmã, bambambã
bebida, partida, dura despedida
escola, gaiola, "mãe, tô com catapora"
dificuldade, amizade, entrou na faculdade
polvilho, brilho, mãe e filho!

Essa empilhação é grão de areia de nossa vida juntos. Você já parou pra pensar que eu sou a pessoa que você conhece há mais tempo nesse mundo? Obrigada pela companhia até aqui, tudo tem sido muito divertido!

Dé,
Eu não tenho vontade de repetir o que já tantas vezes foi dito sobre o filho maravilhoso que você é, embora goste muito de quando você me traz água de madrugada, quando guarda o carro, de como cuida da sua irmã, das suas notas absolutas na faculdade, da sua voltinha diária com o cão, da sua preocupação conosco (precisa melhorar um pouco o quesito lavar a louça e arrumar o quarto, mas isso é outra história...).
Hoje, você assim, crescido, barba na cara, próprias decisões, a maioridade, tenho vontade de ficar horas e horas a tratar da pessoa…
Você é um rapaz inteligente, bom de papo, conhecedor de coisas, interessado em diversos assuntos e vidas, não conhece as verdades absolutas, tem coragem para refazer planos e seguir sua caminhada, trata com cuidado e respeito as pessoas…
Eu tenho sorte, suas irmãs têm sorte, a Jéssica tem sorte, seus amigos têm sorte. O mundo tem sorte porque debaixo do céu e por cima da terra, há você a emprestar as coisas que sabe e a procurar outras para preparar um tempo melhor para todos nós!

Dé, que você continue a fazer sua colheita e semeadura dessa maneira tão leve e tão cheia de beleza.
Feliz ano novo, aproveite e se divirta.
Só vai...   

Um pouco de você aqui, aqui, aqui e aqui - veja, são belezas de outros momentos...




sexta-feira, 1 de novembro de 2013

perpetuum móbile – porque nenhum amor acaba


Os amantes se separam, se vão. Somem no tempo e no espaço. Mas nenhum amor acaba.

Os amores sempre continuam e continuam sempre. O amante vai e o amor fica num objeto da sala, no cheiro de um livro, na cor do dia, numa palavra, num sotaque, na fumaça do cigarro – não há lugar em que o amor passado viva mais que na fumaça do cigarro; no primeiro gole, talvez.

A lembrança do amor é o próprio amor. E se ela vive aqui e ali, é só porque o amor também vive.

Há mais amor na coleção de não-amor do que em qualquer outro lugar.

O amor do passado, que vive no presente e que talvez se junte a outros ainda, não é do tipo que faz mal, que move montanhas ou que desassossega a alma. Ele só está por ali, por aqui, a pairar feito Gasparzinho. A contar um pouquinho sobre a vida que tivemos, lembrança não-autorizada da própria biografia.

O amor do passado as vezes provoca curiosidades: uma espiadinha na vida, uma vontade de saber, um relato de episódio, recorte de momentos...

Sempre que alguém vai embora, deixa um pouco de si no outro. E esse deixar é o amor que continua sempre e sempre continua e faz parte da gente como todas as outras coisas.    

Amor é moto-contínuo.


quinta-feira, 24 de outubro de 2013

estampas eucalol



Meninos, eu vi!
E foram tantas coisas que nem sei como a retina aguenta, a cabeça processa, a memória guarda.

Eu vi por do sol na praia, fotografias antigas, barriga crescendo, caminhão de mudança.
Eu vi avião subindo, margaridas se multiplicando, enfermeira enlouquecida, cantor a fazer lambança.
Eu vi a Torre Eiffel, macarrão na panela, rádio velho, pé quebrado, homem sugerindo contradança.
Eu vi o poeta e vi o rei. Vi rótulo de refrigerante, negro gato, seleção verde e amarela, vi sinal de esperança.
Eu vi o chofer, o pescador, o céu lilás, o rio Guaíba, a coleção de figurinhas encantando criança.
Eu vi Iracema, Capitu, Firmina, Ema, Dalva, menina de trança.
Eu vi balão colorido, bandeira, coqueiro, girafa, sistema solar, nova vizinhança.
Eu vi prédios altos, cabelo esvoaçante, holandesas, casamento e aliança. 
Eu vi!  

E daí, Adriana? Testemunha ocular, somos todos, o tempo inteiro! Grande coisa, quanta besteira, isso cansa!






segunda-feira, 21 de outubro de 2013

o que a insônia me dá:



espaço, tranquilidade, propriedade, desarticulação.
silêncio, sossego, saudade, solução.
amor próprio, coragem, cara limpa, compreensão.
leitura, Bach, Baco, imensidão.
olhar, possibilidade, além, equação.
riso, guiso, siso, contra-mão.
choro, beleza, dentes, perdão.
cuidado, cadência, ciência, certidão.     
tristeza, sono, solidão? isso não!


sábado, 19 de outubro de 2013

a plataforma dessa estação é a vida...


Nessa semana, a Caravana da Poesia encerrou as atividades. A última viagem da temporada foi em Ponta Grossa.

A escola em que estivemos estacionados com o ônibus e em movimento com o espírito é linda! Eu, que sou a rainha da pesquisa e informações sobre os lugares em que nos aventuramos, não sei o nome, não sei da história, a idade ou qualquer outro detalhe... 
Dessa vez, só descobri o que meus olhos viram: um espaço externo do jeito que tem que ser, com árvores imensas, generoso bosque, passarinhos cantores e uma piscina seca, com tanta poesia a transbordar em sua solidão de azulejos que chega a ser comovente. 

Por dentro, corredores de batalhão, janelões abertos a acariciar cortinas azuis, portas pesadas. Pé-direito tão alto e distante que deixa a gente pequeninho na imensidão das salas.
Em excursão interna, descobri como pode ser grande uma cozinha e como os fogões à lenha, esmaltados, conservados e bonitos se transformam rapidinho em objetos de desejo. E descobri mais! Escadas lisas e brilhantes que mais descem do que sobem, levam para porão que guarda todo tipo de reminiscências, pedaços de todas as épocas, restos do passado, histórias dos trecos... tudo atiça a imaginação e se amontoa na franja da memória. 

Disseram que a escola foi seminário, deve ter sido, tem todo tipo, mas não sei, não perguntei. 

Há o reconhecimento do belo por todos os lados e nisso até em causas maiores: 23 graus, sol e ventinho suave a balançar os cabelos das meninas. 

Que bom que a última estação de nossa Caravana foi em lugar assim, com tanta beleza a se derramar em nós...

A bênção, Vinicius! 

domingo, 13 de outubro de 2013

nos fios da memória

Eu tive os melhores avos do mundo! Os pais da minha mãe eram pessoas sensacionais, diferentes, complementares. Sabiam da felicidade dos netos. 
Ontem, minha prima Giovana, que não teve a mesma sorte de convívio que eu e meus irmãos, me pediu para contar um pouco sobre o Estefano, o dono do sobrenome que visto. 

Gio, 
O vô era um homem grande, bonito, vaidoso. Lembro bem de suas camisas, seus sapatos, o pente no bolso, o cabelo castanho escuro - as custas de tintura. A loção que usava tinha o cheiro dele, nunca mais senti. 
Passos firmes, voz alta, olhar seguro. Nenhum vacilo. 
Homem decente. Boa alma!

Lembro-o já aposentado e cheio de rotina: todos os dias dormia depois do almoço, as vezes no sofá da sala da frente da casa da vó, as vezes no quarto; depois da soneca caminhava até o bar que tinha no muro o carimbo da Crush ali na Rua Minas Gerais mesmo, jogava bocha e conversava com os outros avôs (nunca soube dessas conversas, porque ele tinha por princípio não levar menina ao bar, pena!); na volta esperava o resultado do bicho com a vó, jantava e ia cedo pra cama. Todas as segundas-feiras almoçava lá em casa e se eu estivesse de férias ia com ele, que mantinha seu cotidiano: soneca, bocha e papo. 

O vô era super animado, ativo, falastrão. Ele adorava aquelas loucuras de jogar a gente pra cima, carregar nas costas, rodopiar no ar, fazer cócegas e comentários engraçados (tipo o teu pai, mas mais leve). 

Quando não gostava de uma coisa, virava confusão na hora (tipo minha mãe, mas mais acentuado), ia logo despejando seu descontentamento sem pena das pobres almas que estavam em volta. 

Ele era divertido, gostava de conversar e não tinha pessoa que ele não puxasse papo (tipo nossa tia, mas ainda mais extrovertido), falava pelos cotovelos e exigia atenção. 

Criança grande, as brigas com os netos eram sempre por conta do maior pedaço de bolo, do último gole de refrigerante, do canal da televisão, essas coisas que eu, o Clé e o Zeca disputávamos também. 

Todas as segundas-feiras eu o esperava atrás do pé de jasmim para assustá-lo, ele fingia muito bem: gritava, colocava a mão no peito, dissimulava surpresa, falava meia dúzia de desaforos e depois me erguia no colo, me jogava pra cima e eu anunciava feliz para que a rua inteira soubesse "mãe, o vô chegou!". Quando ia com ele pra casa, no caminho sempre contava a mesma história, a inventar que ele e o Zé já tinham nadado naquele rio que fica na metade do percurso. Eu, espoleta, também queria e as respostas me alimentavam a imaginação: "talvez na outra semana / quando fizer calor / o rio precisa estar mais cheio / o rio precisa estar mais vazio...". 

Ele que me socorria quando a maldição da bala Soft parava na garganta: me segurava de ponta-cabeça pelos pés, a deixar que a gravidade fizesse seu trabalho. 

Nas minhas armações infantis com o Clé, o vô sempre brigava com ele. Todas as vezes me poupou das broncas e não passava relatório pra minha mãe. No máximo soltava "por que vocês não vão brincar na pracinha?". 

Ele tinha umas coisas: comia macarrão com leite; escovava os dentes com carvão; gostava de lidar com a terra; pegava pêra no pé e mordia imediatamente; mesmo com o chaminé que era a vó, parou de fumar; adorava couve e bacon, pinhão na chapa e frango ensopado; desligava a TV na hora do comercial. 

As vezes a vó falava umas poesias pra gente e ele torcia o nariz, mas cantava esparramado, feliz da vida, As Mocinhas da Cidade. 

Eu não fui ao velório e ao enterro, sua última imagem pra mim, já enfartado no chão da cozinha da vó, quando estávamos chegando para o almoço de domingo. Essa cena nunca mais me saiu dos olhos. 

Uma vez sonhei com ele, e foi só uma vez. 

Ele foi um avô sensacional, Gio. E, melhor, foi um grande homem! As pessoas falam dele com admiração, com respeito, com amor. 
Pena que foi embora tão moço, tão cedo, sem espalhar aquilo tudo em você, na Dani, no seu irmão e em nossos filhos... Pena! 

A infância, para ser completa, precisa de um avô como o nosso!

Gio, as fotos dele não estão aqui. Quando eu for lá na
mãe, as pego.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

te sinto mais bela...


Filha,

Eu já escrevi mil vezes para você: bilhetes, cartinhas, emails, mensagens, posts no Facebook, no blog. Já fiz versinho, declarações infinitas, afirmações de amor, de respeito, de admiração.

Eu já tirei um milhão de fotos: da sua fofura de neném, dos seus sorrisinhos de criança, de seu olhar de menina e, recentemente, de suas poses de moça.

Eu já senti orgulho de tanta coisa: da primeira música que você aprendeu a cantar “Corra e olhe o céu, bom dia!”; dos versinhos iniciais que você recitou “Ou isso ou aquilo”; da sua primeira vez no palco (logo em solo, logo no Guairão); da sua primeira vez na tela (logo de protagonista, logo no cartaz); dos seus boletins; de suas soluções, de suas vontades, de sua coragem, de sua independência...

Eu já agradeci a você, aos céus.

Sempre digo que se não fosse sua mãe, queria ser sua amiga, sua colega, sua tia, sua vizinha, sua madrinha... de alguma maneira ter você em minha vida e poder fazer parte da sua!
Porque eu adoro o seu humor ligeiro, sua inteligência nas respostas, seu olhar sensível, suas ironias precisas, suas perguntas intimidadoras. Eu adoro cada pedacinho seu e adoro tudo junto, a formar uma pessoa cheia de atitude, de dignidade, de bondade.

Acho o seu cabelo lindo, admiro sua habilidade com as emendas femininas (maquiagem, unhas, etc.), gosto muitíssimo do jeito que você escreve e descreve.

Você sempre será minha filhinha, minha borboletinha, meu pedacinho de céu, meu olhar de estrela.  

Que nesse próximo ano você continue a reconhecer o bom da vida que se espalha ao seu redor, a ser puxado feito imã pela maravilha que você é!

Feliz aniversário!


(olha você aqui, aqui, aqui, aqui e aqui!)


1. grávida de cinco meses / 2. é uma menina! / 3. a brincar
4. muito amor / 5. reflexões / 6. com o cão
7. marrenta! / 8. operária em construção / 9. guria linda!

domingo, 6 de outubro de 2013

retrato

começo sem fim
sem pena, nem medos 

em voltas
      pé em Deus
      carrego todos, os meus e os seus

subo sem rumo
alcanço estrela
rolo feito pedra
        que pesa, amassa e ruína

levito
sou como pluma
         como véu e como espuma

no fim o começo de mim.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

conhecer os desejos da terra


Eu, ainda menina, comecei meus sonhos de futuro a planejar para minha vida adulta ser carteira ou caminhoneira. Sempre penso nisso, muitas vezes falo (e até já escrevi aqui). E ontem, depois de tantas vivências durante o dia e parte da noite, eu fiquei a pensar que, de alguma forma, eu cheguei aos dois objetivos. O meu ofício não se reconhece em nenhum desses nomes, mas ganho as estradas, dobro esquinas, não tenho mais parada e levo, deixo, entrego e recolho muitas mensagens. Sou ou não uma caminhoneira-carteira?

Voltei de Apucarana há pouco. A experiência com a trupe da Caravana da Poesia é muito rica e rara e cara e repleta de beleza: profissionais competentes e seres humanos da melhor estirpe.

A Caravana é viver a festa de estar de bem com a vida!

As vezes, a estrada, o asfalto, o ônibus, o vascolejar não permitem conversa e todo mundo sossega e descansa. Nesses momentos sempre me aparece alguma coisa de muito interessante pela janela e fico meio queixosa por olhar beleza sozinha sem dar tempo de dividir...
E foi assim boa parte da peregrinação da volta: me espichei nos bancos e viajei meio acordada para não perder o sonho e meio dormindo para não perder a vista – ou vice-versa.
A paisagem corre rápido demais e não dá nem pra pensar em foto. Mas gravei na retina, testemunhei solitária três guris a empinar pipa às 10 horas da manhã numa BR vazia; vaquinhas em pose a pastar em cenário estrangeiro; mãe com três filhos a andarilhar sabe-se lá de onde pra onde; casinha com chaminé em fumaça; lindo campo de trigo (e para esse houve tempo de apontar para os amigos, parar ônibus, fazer pose e tirar fotos – e eu até agora não vi nenhuma...).  

No caminho acontece tanta coisa: no caminho mesmo, lá fora, a correr na vitrine do ônibus. Mas acontece também dentro, dentro da gente (só para não escrever dentro de mim), porque a estrada é lugar de muita coisa, a travessia de um lugar para outro inspira que esse movimento aconteça dentro também. E quando isso começa me dá duas vontades: a primeira, de lançar âncora, desligar motor e parar imediatamente; a outra é de aproveitar o embalo e me jogar e viajar do Oiapoque até Nova Iorque e super levar em conta o Rosa quando tascou que “Todo caminho da gente é resvaloso.
Mas também, cair não prejudica demais - a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!”.

Aos amigos que permitiram que o trabalho se transformasse num maravilhoso encontro, todo meu agradecimento nesse texto estilo samba-do-crioulo-doido... 
E amanhã, desço a Serra do Mar para nova aventura.