quinta-feira, 30 de outubro de 2014

no mercado

Sou rainha das listas. Faço lista pra tudo, dos afazeres cotidianos às roupas que irão na mala da próxima viagem. Me sinto segura assim; a memória aprendeu a funcionar nesse modo.

A exceção mora justamente onde deveria ser regra: mercado. Não consigo me organizar; quando abro armários e geladeira para investigação dos ausentes, logo me distraio com o que há e vai tudo por água abaixo... O resultado é sempre o mesmo, perco tempo, passeio por todos os corredores, encho o carrinho de coisas e quando chego em casa percebo a incompetência. 

Já tentei várias vezes mudar esse panorama. Parece que minha sina é mesmo ir ao mercado de dois em dois dias. Num compro detergente, no outro guardanapo.
Para frutas e verduras prefiro o ar livre; vou à feira e carrego comigo a mesma incapacidade.

Dia desses fui surpreendida por simpática senhora no corredor de massas/molhos. Diante da incrível oferta de variedades de marcas e tipos de macarrão, estava a ler rótulos e origens até que me decidi por dois tipos: um fetuccine integral básico e um linguine negro com tinta de lula. Quando coloquei esse último no carrinho, a velhinha me soprou no ouvido “onde você costuma comprar lulas?”. Ao explicar que tenho por hábito uma peixaria do Mercado Municipal, me dei conta que precisaria ir até lá para continuar com o prato. Mais uns dois minutinhos de conversa sobre receita e modos de preparo, ela me sugeriu fazer o fetuccine com pesto, lembrei que precisava comprar molho.
Nos despedimos.
Caminhei mais um pouco e estava a comprar ovos quando a vi de novo, escolhia morangos. Lembrei que precisava de suspiros e creme de leite. E quando cheguei à prateleira do creme, estávamos novamente no mesmo corredor; ela escolhia o sabor de geleia o que me fez pensar que precisava de Nutella para a Lívia. Simpática, disparou “compro essa geleia, mas como com pão preto para não fazer tanto estrago no colesterol”. Ri e segui correndo pra padaria, precisava de pão também.


A minha conclusão: talvez se eu fizer as compras seguindo alguém no mercado, dê certo.    


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

este céu sem fim

Depois de alguns meses a escrever no bloco de notas, volto às boas com o Word. Computador novo, quantia pouca para a Microsoft, um suquinho de maracujá durante a transferência e a licença é minha.

Até as teclas parecem outras. A vida se refaz e tudo começa a voltar para seus devidos lugares.

Mais concentração na leitura de textos, grande facilidade para marcar palavras, grifar expressões, colorir anotações. E a imensa variedade de fontes? Adoro todos os recursos, até os que não conheço e que provavelmente nunca usarei. Adoro!

E aqui, com toda a tecnologia disponível, me esbaldando nessa matação de saudade, eu pergunto: adianta tudo isso se eu não tenho assunto para escrever?
Me sinto como quando entrei numa dessas salas de cinema super modernas para assistir um filme porcaria.


Oh musa da inspiração!, abre as asas sobre mim...


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

terra da felicidade

Não sei se acontece com todo mundo, mas a cidade de Salvador para mim é um estado de espírito. Um lugar que povoa minha imaginação de uma forma muito descolada da realidade de uma metrópole em que quase três milhões de pessoas vão e vêm. 

A Salvador de toda minha vida tem baianas do tempo do imperador; acordam em trajes brancos, rendados, rodados e adocicam tudo com aquele jeito manso de falar, um acarajé sempre pronto e um samba de roda na ponta da língua para embalar a vida doméstica. Nada lhes tira a calma ou compromete o requebrado do andar, balé sensualíssimo nas pedras do Pelô.  

Os baianos todos - incluindo professores, motoristas, frentistas, médicos e advogados - são pescadores e cantores; homens do mar e da poesia, com o corpo torneado pelo exercício do remo e das velas e as palavras escolhidas pela beleza. Em todos eles, até nos contadores e bancários, o olhar de enlouquecer. 

Na minha Salvador o tempo passa lentamente e há sempre uma rede debaixo de um coqueiro; ali pertinho, um regional de camisa listrada e chapéu panamá batuca simpaticíssimo as aventuras do amor e do cotidiano. Todas as canções que falam das sacadas e sobrados da velha São Salvador são revividas com graça e tranquilidade. 

Dorival Caymmi está nos altares das 365 igrejas que a Bahia tem, Jorge Amado de um lado, Castro Alves de outro. Candomblé, capoeira e fitinhas do Nosso Senhor do Bonfim são expressão e cenário, vida e arte, abrigo e composição para que a aristocracia desfile nas tardes de domingo a caminho da matinê do Cine Olympia ou de algum musical no Cine-Teatro Jandaia - os dois ali, na Baixa dos Sapateiros, na antiga J.J. Seabra. 

Todos os santos católicos descansam e olham para o tempo, passeiam pelo Mercado, contornam o Farol da Barra, as vezes gritam Gregório de Matos, as vezes sussurram Antônio Vieira. Eles lavam escadarias, almoçam em terreiros e beijam as mãos de Iemanjá.

Essa é a minha Bahia. E é ela que visito em sonho ou em cartazes de agências de turismo. 
É pra lá que eu vou quando a realidade se impõe cinza, barulhenta, dura, fria.

Bahia, terra da felicidade…


domingo, 26 de outubro de 2014

trem

minhas malas estão prontas 
sei que não voltarei mais
nunca mais. 

arrumei tudo, 
shampoo, escova e tamanco
aquele vestido de borboletas
e a bolsa azul.

etiquetei a bagagem 
meu nome, meu sangue
toda minha história e dois cadeados
três cartas de lembrança 
e o velho anel. 

pesam muito minhas malas
a vida inteira ali dentro
mais a saia reta e o scarpin marrom
dois amuletos, 
a fotografia dos meus pais 
e as anotações para o futuro. 

não voltarei mais
nunca mais

e levo na bagagem a certeza
da vida que passou
a camisa de gola rolê 
os cartões para colocar no correio
e todas as esperanças. 

embarcarei no trem das oito
as duas malas prontas 
a vida inacabada 
e a certeza que não voltarei

não me falta nada 
carrego o creme para as mãos, 
a calça de botões dourados 
e o crucifixo no pescoço.

na partida, nada ficará de mim
não haverá traço, marca ou memória.

passagem nas mãos 
os documentos guardados 
a coleção de lenços, 
o casaco de frio, a imagem do santo
e a certeza que não voltarei mais.

voarei livre e leve
como se não tivesse comigo
as partituras da nossa música
a camisa verde de chiffon 
e a maquiagem provisória.

levo tudo comigo 
as malas cheias de vestidos
papeis antigos 
e um biscoito para o caminho 
e a certeza que não voltarei
que não voltarei nunca mais.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

gentileza gera estranheza


há muito que ouço por aí sobre como as pessoas são brutas, não se olham, não se ouvem, não se gostam, não se reconhecem. 
acho que são pequenos rios que vão em direção a um grande mar de confusão, lugar em que procuro nunca mergulhar.

exemplo: tempos atrás estava com Lívia no mercado. no caixa, à nossa frente, uma moça com compras para uma festinha de aniversário: salgadinhos, docinhos, uma vela   de 4 anos, e um bolo. na hora de pagar, percebeu que a grana não daria pra tudo. pediu para atendente ir tirando os saquinhos de salgado e subtrair valores. fiquei comovida; a festa, que já seria bem simples se ela levasse tudo, ficaria ainda mais desfalcada. com muita delicadeza, pedi para que passasse a compra completa que eu pagaria a diferença. qual o que?! a moça se sentiu ofendida, ofendidíssima, e me tascou "não preciso do seu dinheiro!". insisti. disse que não era meu dinheiro, mas um presente, como forma de participar da festa. me mediu da cabeça aos pés e negou. 
a soberba com que me tratou me constrangeu. me calei humilhada, sem graça, quase criminosa. 
se o caso fosse contrário e eu a tratasse mal acho que alguém seria capaz de chamar a polícia e sugerir um processo para me enquadrar em alguma via hipócrita de nossas Leis. como se deu no sentido inverso, eu que tratasse de engolir qualquer pseudo-ofensa. 

hoje, Mercado Municipal. para percorrer corredores sem ter vontade de comer tudo que via pela frente, parei na lojinha de bolacha. enquanto a mocinha pesava minha encomenda, mãe e filha pararam ao meu lado. a pequena queria a mesma bolacha que a minha, a mãe negou "muito cara essa, escolha outra". os olhos da gurias imediatamente boiaram. peguei meu saquinho e como não sabia nada da história das duas, perguntei baixinho "posso dar meu pacotinho pra sua filha?". a mulher me olhou fundo e inquisidora perguntou por que, quis saber por qual motivo eu queria fazer aquilo. fui respondendo com calma, num caô de que me arrependi de ter comprado, de que não estava com vontade, de que ela aproveitaria mais do que eu. aceitou de um jeito duro, sem sorriso e ainda com interrogações nos gestos. 

fui-me embora e enquanto almoçava lá na Maia vi um rapaz com uma daquelas camisetas do José Datrino "gentileza gera gentileza". 
até pode ser, mas para mim isso não acontece imediatamente, precisei circular percurso enorme até estar diante do casal Maia&Mauro para reconhecer em seus sorrisos a hospitalidade donaire. 

a curtíssimo prazo, a queima roupa, gentileza gera estranheza. 


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

renovação

do amor eterno

só posso provar que meu amor é eterno
depois do fim
do fim de mim
antes disso 
hei de amar-te
todos os dias 
todas as horas
num ciclo que se renova
a cada minuto de sua dúvida
e na prova de cada segundo de 
meu amor
quando passo as mãos em teus cabelos
quando te sorrio ao telefone
quando te beijo no rosto
quando mordo teus lábios
e te abraço forte
quando olho em teus olhos
quando desenho corações 
e quando te convido para jantar
estou dizendo que te amo
que te amo agora, hoje,
só hoje 
e isso já é o para sempre 

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

latim em pó


Dizem por aí que a Língua Portuguesa tem 500 mil palavras, com variações para mais ou para menos, sem margem de segurança. Num piscar de olhos ou num dedinho de prosa novas surgem para nos dizerem alguma coisa que ainda não foi dita ou para novidades em nosso cotidiano e aos poucos, em gerúndio, vão engrossando o caldo do vocabulário.
Também corre por aí a informação que uma pessoa com nível médio de instrução (que não sei dizer o que é exatamente) utiliza cerca de 1500 palavras em sua coleção particular de comunicação.

Pois bem, otimista, partirei do princípio que conheça e use as tais 1500.
As vezes consigo, sem ferir os mestres da Língua, reuni-las em sequência, as vezes não, e isso é grave. Procuro prestar atenção nas concordâncias, mas tem dias que alguma coisa me escapa, e isso é gravíssimo. Tenho ao alcance das mãos alguns dicionários para consultas e a ajudinha camarada dos corretores de texto, ainda assim, de quando em vez, escrevo errado, e isso é pra lá de gravíssimo.

Um tempinho atrás mandei cartinha pra minha amiga Letícia e lá pelas tantas pedi que ela me ajudasse com algumas coisas para que eu “pudesse dar os primeiros passos”, escrevi paços. Paços, com cedilha, como a corte! Que vergonha, que tristeza! Logo pra Letícia que é craque em nossa rica e surrada Portuguesa…
Além de saber tudo do idioma, é pessoa gentilíssima. Nada disse, não fez comentários e quando eu acusei o vexame, tratou de amenizar como se aquele fosse um tipo de equívoco tolerável. Não, não é! Passarei o resto da vida a me chicotear por ter escrito errado para Letícia. Pô! Dum universo de 500 mil, uso 1500 e mesmo assim consigo errar? Deveria ser caso de polícia. 

Nessa semana, toda serelepe, contava aqui no blog de minhas aventuras domésticas e tasquei de novo passos com cedilha. 
Mas será o Benedito!? Ora bolas!, se sei que o lance se escreve com ss por que cargas d’água essa obsessão pelo ç? Dislexia ou psicologia?
Isso desmoraliza, humilha, envergonha! Assim, minha Língua nem de longe roça a de Camões, se continuar nessa balada não terei o grande orgulho de pertencer à mesma família de Pessoa, Drummond, Machado, Braga, Bandeira...
Serei deportada lá para o universo de “Orora Analfabeta”, da criação de Gordurinha, e passarei a escrever gato com j e saudade com c...           


Eu arrumei uma dona boa lá em Cascadura
Que boa criatura mas não sabe ler
E nem tão pouco escrever
Ela é bonitona, bem feita de corpo
É cheia da nota
Mas escreve gato com "j"
E escreve saudade com "c"
Ela disse outro dia que estava doente
Sofrendo do "estrombo"
Levei um tombo... Cai durinho pra trás
Isso assim já e demais
Ela fala "aribu", "arioprano" e "motocicreta".
Diz que adora feijoada "compreta".
Ela é errada demais!
Vi uma letra "O" bordada na blusa
Eu disse é agora
Perguntei seu nome ela disse Orora
E sou filha do Arineu
Mas o azar é todo meu

sábado, 11 de outubro de 2014

my name is Jack



a Lu vem aqui uma vez por semana. com o passar do tempo e as habilidades de cada uma nos entendemos assim: eu faço o serviço pesado e ela a arrumação geral. nenhuma de nós gosta muito de grandes esforços mas como a principal interessada sou eu, acabei assumindo a parte trash da faxina.
as vezes me acho meio tonta, as vezes me acham meio burra, mas mesmo assim permaneço nessa ligação que ultrapassa os desencontros domésticos. normalmente terças e sextas são os dias escolhidos. as sextas são minhas, com variação de um dia para mais ou um dia para menos; as terças são dela, certeiras.  

há muitos anos tenho playlist para as horas de dedicação aos afazeres. ele muda conforme o tempo. insiro músicas novas, tiro outras. vario.
desde a primeira fita gravada para esse fim, faço opção por músicas de dançar. composições que dão ânimo, que puxam da cadeira, que inspiram movimentos. não raro a vassoura vira microfone, a cozinha palco e monto show exclusivo aos vizinhos do prédio ao lado.

hoje iniciei repertório novo; entre outros, Ray Charles. feliz da vida a esfregar o chão tive a ingênua ideia de ensaiar uns passos. sabão, piso molhado e soul são coisas que não combinam. podia ter descoberto isso no primeiro escorregão, mas a revelação só veio quando eu estava estatelada no chão.
na agulha o Ray, rei, ria: “hit the road, Jack”.

vamos precisar de um novo time!         


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

slow motion

tenho preguiça. muita. 
não me envergonho, até acho saudável e de certa forma uma prova de alguma inteligência. a preguiça me defende de encrencas, é escudo protetor de algumas situações, primeiro degrau para o Olímpio do ócio.

é muito mansinha, chega devagar, apalpa o corpo, percorre as veias, solta o ombro, prepara para levitação. 
depois sobe pra cabeça. vai apagando lentamente qualquer figurinha que transborde, despreza pensamentos démodés, não faz contas, deixa os esforços de entendimento de lado. 

com a preguiça sempre rola um aviso a respeito das precisões do corpo e da mente: relaxe, descanse, se solte, se largue. 
ela é quase igual à mãe preocupada que acha que o filho trabalha demais, se incomoda muito e descansa pouco. ela sussurra os conselhos incompatíveis com as urgências cotidianamente inventadas por quem tem medo de fruir. 

tenho preguiça e a cultivo como fatia saudável de tudo que me compõe. e porque não luto contra, ela acabou também se disciplinando e sabendo dos horários para as manifestações irrecusáveis. 

a preguiça tem som de bossa nova, gosto de alcachofra, oscila entre o lilás e o azul, tem perfume de lírio e acaricia a pele como o algodão da camiseta mais velha e surrada do armário. 
a preguiça é o meu ópio, é nela que me refugio das agruras do mundo. 

doce lar

chega um dia em que o público muda. 

hoje a casa esteve cheia. primeira vez desse jeito tão diferente. o caso se deu por conta do aniversário da Lívia e da vontade da Rafa em lhe fazer festa surpresa. não sei precisar o número de guris e gurias que passaram por aqui, mas foram muitos. muitas vozes. altas vozes. risadas, conversas, refrigerante no chão, bolo na cadeira, bexigas nas paredes, vela teimosa, brigadeiro, empadinha, croquete no tapete, flores na água, presentes comemorados, muita diversão. encantamento!

durante todos esses anos de maternidade vejo em casa amigos dos filhos que se revezam em finais de semana, almoços, jantares, entra-e-sai, tardes de estudo, arrumação para saídas. mas sempre no varejo. quando festa, grandes reuniões, operei em espaços maiores com possibilidade de entretenimentos diversos para que toda a energia desaguasse sem censura. 

gostei de todo mundo aqui. a síndica não. 

senti falta de algumas jovens pessoinhas que gosto e admiro e de uma forma ou de outra acompanho o crescimento, o adolescimento. adorei conhecer outras. 
suspeito que faltou comida. sobrou alegria.

o bom disso tudo é perceber como a casa nos abraça e nos suporta a todos: minhas reuniões, meus amigos, minhas particularidades, os amigos dos filhos, as festas dos filhos, os encontros dos filhos. 
não há lugar melhor no mundo, no mundo inteirinho incluindo Roma, que o lar doce lar. e quando ele está assim, festivo, é melhor ainda. 

convite aos vizinhos: toquem a campainha e aproveitem a vida por aqui, o descanso fica pra outro dia.