domingo, 23 de novembro de 2014

Beto Batata

"voa, menina, voa", me disse isso, olhos nos meus, abriu minha mão e me presenteou com uma revoada de passarinhos de origami. tesouro.

sei, pela análise do passado, que não é exatamente reflexo da verdade, já havia alcançado certo respeito profissional quando Beto me soltou esses passarinhos. mas foi em seu olhar que eu senti pela primeira vez que alguém verdadeiramente confiava em meu trabalho.
era qualquer coisa em seu jeito, em seu olhar, nas suas mãos. era uma forma de me emancipar de mim mesma, de destruir os meus medos. 

toda vez que o vejo, tenho esse momento de volta. me renovo em seu sorriso, me percebo linda no espelho dos seus olhos. 
o Beto sabe mostrar o melhor de cada um. é a marca da generosidade: deixar que a gente acredite em virtudes próprias. 

muitas vezes recebi bilhetinhos carinhosos que me fizeram renovar esse sentimento. faz tempo que ele não me manda um recado sobre mim mesma. reclamo. reclamo porque tenho aqui a minha cota de egoísmo que me faz querê-lo disponível, mesmo quando está concentrado em suas pendengas. 

quantos assim no mundo? poucos, raros. 

há uns meses, quando recebi o anúncio do fechamento do restaurante, lamentei. tristeza, porque passei grandes momentos da vida lá, vi artistas incríveis tocarem a um palmo de distância, conheci sabores inesquecíveis, brindei saúde a muitos amigos. tristeza também pela cidade, que cada dia fica mais pobre, mais seca, mais vazia. 
mas há uma onda maior.
o Beto é o Beto, e não é a Aldeia que o faz, foi ele quem a fez. o Beto é maior que o restaurante. a sua figura, sua cabeça, sua cadeia de pensamentos e ações serão sempre possíveis. 
na memória, os momentos vividos num lugar espetacular. 
na vida real, esperar por seu novo endereço e recomeçar a construção de um novo tempo, que será tão belo quanto o passado, porque ele estará lá. 

ele se sente um milionário? nada! riqueza tenho eu, por saber de sua existência...
 




quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Horácio



não sou pessoa do tipo previdente, que guarda para o futuro e prepara a vida para o tempo da velhice. essa inclinação para viver o dia de hoje é mais forte que qualquer juízo.

um dia desses, embarquei no pensamento inédito de projetar, pensar no que vem daqui alguns anos. abri um caderninho e fiz anotações secretas para o que quero e o que eu tenho que fazer para conseguir. papo cheio de estratagemas, mapas, datas, ações e possíveis consequências. 
não parecia que o futuro ia chegar para mim, mas sim que eu o invadiria, o tomaria de assalto, colocaria-lhe rédeas e comandaria a sorte desse tempo vindouro. 
concentrada, desenhei cenários. adivinhei situações e arquitetei o melhor dos tempos. minhas sementes eram todas bem coloridas e doces e refrescantes e suaves e cheias de amor e de vida. 
não poderia ter estrada melhor do que aquela em que eu ainda caminharia - o melhor o tempo esconde, longe, muito longe, mas bem dentro aqui

pois bem, situações de várias ordens me colocaram de novo na real. querendo ou não, o que eu tenho é o dia de hoje, o agora, o céu dessa quinta-feira e tudo o que me for permitido debaixo dele. 
não há futuro. a vida inteira é o dia de hoje. e só.

as vezes sinto falta de alvo para guiar minha marcha. 
nos dias piores, é meio desesperador acordar sabendo que não há objetivos nem sonhos nem nada a não ser o que o calendário acusa como o agora. nesses momentos contexto minha patética existência, tenho ondas de pessimismo.

em tempos melhores, toda a vida de um dia me invade e sinto o corpo inteiro e a dança dos pensamentos e os desejos em formação e concretização ao mesmo tempo.  é como se um redemoinho de pequeninas alegrias me envolvesse e me puxasse para um lugar maravilhoso e ele é o dia de hoje. 

entre essa louca oscilação, mantenho a espinha ereta e amanheço renovando votos que acho que devo renovar e desprezando o que não me serve mais: exercício de passar a vida a limpo todos os dias. 


ai!, meu dedinho!


uma das tantas inabilidades da minha existência é a consciência do espaço em torno de mim. 
quantas vezes uma pessoa consegue bater a mesma canela no mesmo lugar da cama? até o cachorro aprende sobre os perigos e armadilhas dos lugares conhecidos. eu, dia sim e outro também, deixo um pedaço da perna na quina da cama. 
e isso se multiplica no canto do armário, na mesa da sala, na porta do elevador, no box do banheiro... 
consegui levar quatro tombos e um tropeção (porque era um dia de atenção máxima) no mesmo degrau na entrada aqui do prédio. 

essa estabanação também me acompanha na hora de lavar a louça, de tirar a mesa, de lavar o chão, quando seguro um objeto ou passo com o casaco longo perto da estante. 
terremoto. 

quando minha irmã decidiu casar, percorríamos lojas de coisinhas pra casa. lembro que ao visitarmos uma casa de cristais, ela deu a ordem: "você me espera aqui fora, não fica perto da vitrine!". como era de costume, obedeci. 
noutra vez, Lívia pequena, entramos no mercado e ela se antecipou uns passos à minha frente e alcançou outro corredor. de repente um estrondo, barulho de louças se esmigalhando. me procurou correndo e preocupada, "mãe, o que você fez?". nem era eu, não tinha feito nada, mas me senti culpada pela prateleira que desabou com todos os copos bem longe de mim. 
em qualquer situação onde haja algo estraçalhado no chão, acho que de alguma maneira, fui eu. 

pois bem, domingo a passear com o cão na pracinha, vi um buraco na calçada, desses que parecem que vão se tornando cada vez mais fundos, até chegar ao Japão, como pensava quando era criança. preocupada com a segurança alheia, tratei de fincar um galho no dito, forma de chamar atenção do pedestre mais distraído. o gesto foi tão teatral que parecia descobridora de terra a empunhar bandeira do meu reinado. 
não sei exatamente como aconteceu, mas hoje o galho não estava mais lá. observei na ida e fiquei a procurar substituto para continuar meu projeto de sinalização. o telefone tocou, me distraí na conversa e na volta, o vexame: lá estava eu, um pé no buraco, outro na borda; uma mão na guia do cão outra na calçada; uma perna dobrada do lado de fora e outra toda ralada do lado de dentro. 

como explicar isso? qual parte do meu cérebro está permanentemente desligada? por que não consigo prestar atenção, ter noção espacial, me inserir no mundo como parte dele e não como gigante pisando em formigueiro? 

será que tem cura? 



quarta-feira, 12 de novembro de 2014

afogada

eu estava toda feliz e sorridente, equipada e capacitada, com computador novo. o meu lindinho, fininho, eficiente e companheirinho MacBook Air chegou por meu Mecenas em assuntos tecnológicos, Alex.

(antes de prosseguir com a história é importante fazer um parênteses para o Alex. ele vem sustentando minhas necessidades e caprichos de hardware desde o meu primeiro iPhone. com simplicidade e despojo, sempre faz isso como quem manda pelo correio uma caneta Bic. ao mesmo tempo em que nutre interesse e conhecimento por todas as parafernálias da tecnologia, e tem todas, também é dono de um desapego invejável.)

como estava a falar, vivia minha lua de mel com o fininho da Apple. sábado passado, dei uma saidinha de casa, coisa rápida, cinco minutinhos. fui até ali para voltar em seguida. no meio do caminho, chuva torrencial, pedras, vendaval. a janela do quartinho estava aberta e nem o telefonema desesperado pra casa e atendido prontamente foi capaz de poupar a máquina. 
a água se entranhou pelo sistema, percorreu seus transmissores, oxidou peças e afogou o pobre. 
com o orçamento de conserto veio sua sentença de morte. 

não tenho coragem de ir buscar a carcaça que em tão pouco tempo acumulou muita coisa. pânico ao pensar que as lembranças de uma vida podem ser perdidas e as apostas de futuro também tenham sido submersas. 
os trabalhos estavam lá, os textos, as fotografias... agora imagino-os boiando desfigurados numa imensa piscina em formato de maçã cortada ao meio e mordida na ponta. 

antes de qualquer coisa, achei que tinha que contar para o Alex. eu parecia criança que quebrou brinquedo novo já no dia 26 de dezembro, escolhia as palavras para misturar inconsequência, fatalidade, azar, tristeza. ele fez o que? gargalhou! "você precisa comprar um ar condicionado para não correr esse tipo de risco." e se precipitou nas providências de não me deixar sem máquina. 

não sei se continuo com esse ar de lamento por ter feito tamanha besteira ou se compro fogos de artifício para comemorar a grande sorte de conhecer o Alex. e atenção!, essa, nem de longe, é uma de suas melhores qualidades...




terça-feira, 11 de novembro de 2014

tratado de silêncio

fico triste com minha incapacidade de conversa. 
tudo que consigo, acho, comunicar na calmaria do papel tem dimensão completamente inversa na fala. não sei se por submissão, covardia, timidez ou puramente incompetência, muitas vezes percebo que não estou sendo compreendida. a situação me exaspera, o corpo cansa e o eterno sentimento de inadequação no mundo cai sobre mim feito uma capa pesada que cobre qualquer manifestação mais ou menos delicada de minha personalidade. 
não gosto de discussões e discuto, não gosto de brigas e brigo. a besta-fera que mora em mim, ao mesmo tempo se solta e se refugia, se larga em dizer barbaridades e se fecha ouvindo o pensamento, tão claro, sem repetí-lo. 

fico tão abatida e infeliz que juro um milhão de vezes pra mim mesma que jamais tentarei expor qualquer tipo de perturbação: melhor preservar o silêncio, engolir tudo de lôbrego mesmo que vire câncer, como dizem por aí.

para me livrar das minhas responsabilidades existencialistas, culpo a educação, por vezes severa, da infância que me sublinhava os direitos furtados da argumentação, exposição ou negociação; ou a escola que bateu na tecla do idioma escrito e pouquíssimo na da expressão oral. 
para ser honesta, escrevo texto confessional como esse, que não serve pra muita coisa, mas que de alguma maneira vira catarse e me alivia um pouco das angústias de ter que conviver com tudo isso. 
assumo meu quinhão expondo essa fatia de humanidade como se isso pudesse aliviar um pouco o tamanho estrondoso dos meus defeitos. 

no privacy

pode ser que eu esteja enganada, até é bem provável se considerar minha crônica burrice a respeito de tudo que anda, voa ou se arrasta, mas tenho a impressão, desde sábado à noite, que um vizinho me espia. 

o lance começou quando eu lia na poltrona da sala. era noite e por conta de um ventinho perturbador levantei para fechar a janela. como de costume não puxei o vidro de uma vez só, dei uma olhadinha em volta. na janela do que deve ser um oitavo ou nono andar de um prédio vizinho, a silhueta de um homem. 
o prédio em questão não é colado ao meu, os terrenos não são limítrofes, a construção do de cá é separada pela a do de lá por mais ou menos uns 50 metros em linha reta, mais os de altura, eu no quinto e ele no oitavo ou nono. 

pois bem, sem fazer sinal nem cumprimento, porque achei que não era o caso, me defendi do vento e voltei à poltrona. retomei a leitura, os parágrafos me prenderam por umas 20 páginas, levantei os olhos e lá estava a sombra do homem. 
não sei exatamente qual é a paisagem que ele bem mais alto e em outro ângulo consegue de lá, mas parecia voltado para minha direção, ou para direção do meu prédio. 
sem mais, guardei página, me levantei, apaguei as luzes e fui dormir. 

noite seguinte, mesmo ritual pros dois. 
fiquei um pouco incomodada. pensei em trocar de lugar, mas essa ideia me perturbou também - ora!, tenho eu que sair da minha poltrona preferida porque acho que um vizinho me espia a leitura?
não pude conceber fechar as cortinas, porque nunca posso conceber fechar as cortinas, me sinto sufocada, engasgada, preocupada. 
segui.

hoje, noite das últimas páginas do comovente "O que amar quer dizer" estava muito concentrada e emocionada e viajei num fôlego só pelo capítulo final. 
não lembrei do vizinho, esqueci de reparar se ele estava em sua vigília. foi só na frase final, naquele momento em que a gente fecha o livro e suspira a solidão de se despedir do autor, que levantei os olhos e o vi quieto e debruçado. 
morri de raiva! me espionando ou só tomando a fresca, ele me retirou aquele sentimento de melancolia tão única que se vive no final de uma obra. 

fragilíssima que sou, deixei que o respeito e a gratidão por Mathieu Lindon fossem trocados por esse distúrbio social de ser observado (ou se achar observado) e de observar, porque é certo, se não o olhasse, ele não existiria. 

fecho as cortinas, nem que volte para o divã!



sábado, 8 de novembro de 2014

Leucocoprinus birnbaumii

Acordei cedo para preparar almoço de aniversário do Dé. Dormi tarde porque estava a preparar almoço de aniversário do Dé.

No meio dessa atividade, umas horinhas de sono.

Tenho um pensamento recorrente desde a infância. Há alguns anos, depois da estreia do infantil Toy Story, sei que outros também são perseguidos por questão parecida: o que acontece com as coisas quando não sou ocular testemunha? Ao virar as costas para os inanimados eles assim continuam?
Acho que rola uma mágica e ganham vida e se esbaldam na ausência dos humanos. Fazem grande revolução: os pés das meias se desgrudam dos pares que lhes foram prometidos como parceiros eternos na alegria e na tristeza, na saúde e na doença; as tampas dos potinhos da cozinha declaram independência e atravessam um portal fantástico para irem, promíscuas, tampar outros companheiros; as chaves mostram natureza autônoma e por isso mudam de lugar, nada de continuarem ali, em cima da mesa ou penduradas onde as deixei, escolhem onde querem ficar ou se esconder; o vestido azul nunca está pendurado em seu cabide, vaga fantasmagórico por aí, sonha em vestir a loira do táxi e assombrar as noites da cidade, depois desiste e se joga sem jeito e exausto em qualquer lugar do guarda-roupa.
As coisas são voluntariosas.

Há mais vida nas coisas que nos seres. O cão dá pouco sinal de seus movimentos pela casa, as plantas só me contam da sede e da mudança das cores.
Mas de ontem pra hoje, enquanto eu curtia o intervalo dos preparativos do almoço, algo estranho, sinistro, quieto e poderoso aconteceu.
Cogumelos se instalaram no vaso de planta da cozinha. Acho que enquanto batia o bolo eu deixei escapar pitadas de fermento na floreira, em míseras quatro horas, eles apareceram vistosos, crescidos, pulsantes, mais amarelos que sol de desenho de criança. Espanto!

Com a ajuda dos amigos, biólogos e curiosos, descobri sua natureza de independência e vontade própria de crescer aqui e ali.  
Temo uma associação clandestina entre eles e as coisas. Apavoro-me com ideia de que se apaixonem por um band-aid e se mudem para caixinha de primeiros socorros ou que queiram abordar as canetas e se instalem no penal. Imagino-os dentro do faqueiro, a tentar seduzir simpática e inocente colherinha.


Eles que não me provoquem, antes de tentarem qualquer tipo de movimento, podem conhecer rapidamente a lata de lixo!  



terça-feira, 4 de novembro de 2014

de olhos abertos

Teve um tempo da minha vida que sonhei em ser escritora. Tinha a imaginação fértil e nenhum medo de desejar.

Minha cabeça não pensava nas praticidades. Água, luz, telefone, casa própria, escola dos filhos, plano de saúde, essas coisas todas que insistem no cotidiano real estavam fora dos meus devaneios.

Tinha feito plano (im)perfeito: moraria numa varanda de Antonina, com vista para baía, passarinhos ao redor e sossego constante de fim de tarde. Na minha casa, pouco mais que o alimento: música, livros, imagens e umas bobagens de comer e beber.

Recolhida, muito seria necessário para me tirar da clausura. Apenas os compromissos imprescindíveis como máquina fotográfica, passarinho, flor, caminhada, botequinho abjeto, missa de domingo ou samba na Carioca.

Meu maior problema seria os prazos de entrega dos textos, sempre no último minuto, no segundo final, ao apito do juiz.
Escreveria para crianças. Somente para crianças. Nada de croniquetas errantes ou colunas enfadonhas ou matérias que arrastam grilhetas ou qualquer outra coisa que poderia me levar à guilhotina, fossem os leitores menos condescendentes.

Como não sou boba nem nada, o paraíso teria ar condicionado, internet rápida e um carro à minha disposição para visita à capital: conversa com editor, concerto ou aeroporto para as férias europeias – quando mudasse para Antonina, minhas primeiras férias seriam em Luxemburgo.

Receberia visitas. Família em pequena tiragem e amigos para ficar a par de todas as bossas.
As portas também estariam abertas para as escolas da região, estudantes e professores, para pensarmos juntos em brincadeiras intermináveis com tudo aquilo que a grade curricular obriga.

Levaria a luneta que ganhei do meu pai, a coleção de lanternas e muito repelente. Todas as caixinhas, girafas, quadros, enfeitinhos e móbiles estariam lá a se espalhar com naturalidade pela casa.  

Do tempo em que esse sonho voou para mim até hoje, pouca coisa mudou. Feito princesa encastelada na própria fantasia, vez ou outra, ainda acho que é possível. É na margem direita do São Joãozinho Feliz que mora minha quimera de felicidade.


Mutantes

O Cristovão Tezza disse hoje que vai embora. Chega de crônica, chega de Gazeta, chega de dois mil e novecentos toques por semana. Vai se dedicar à ficção – escrita e leitura.
Não sei dos motivos, não conheço Tezza; sou sua leitora semanal, com oscilações no gostar e me sinto um pouco traída com a notícia.
Mas é assim mesmo, decerto o escritor ficaria infinitamente a assinar coluna? Caquético, 127 anos, procurando os óculos e o assunto da semana? Claro que não. As coisas mudam. Muda a gente. Tudo muda, até o que nem suspeitamos...

A maior novidade do jornal da província me fez pensar no que transforma a vida da gente. Engraçado, não encontrei grandes estopins. Vasculhei a memória atrás dos acontecimentos pontuais que me fizeram pegar a direita aqui, a esquerda acolá, seguir, parar, voltar e a descoberta veio vestida de obviedades.

A primeira e mais evidente, tem relação com o tempo. O tempo nos modifica. Mas faz isso com tanta lentidão que nem percebemos, um dia olhamos pra trás e entendemos que já não fazemos mais o que fazíamos antes ou que pensamos de modo diferente de encrencas atrás.

Agarro os outros motivos de mutação ao primeiro, mas mesmo assim se parecem com luzes independentes.
Uma paixão faz mudar, uma desilusão também.
A descoberta de um problema de saúde, nova cidade, vício, achar restaurante gostoso, modificam hábitos. Emprego, desemprego, aproximação de vestibular, plano de viagem e início de dieta também.
Filho, casamento, funeral, toque divino, aprender tocar violão, tese de mestrado, endereço novo e planos econômicos alteram o curso.
Trauma, guerra, filhotinho de gato, anel de safira, irmão mais novo, assinatura de canal a cabo, conhecer Manoel de Barros e a chegada do amor nos fazem mutantes.
Assim como parar de consumir lactose, trabalhar à noite, ser voluntário em orfanato, vender o carro, perder o cronista do jornal e reformar a casa.

O tempo é o sol e os outros gatilhos são estrelinhas menos fundamentais que se misturam ao cotidiano, mas que existem e brilham.
Porque a gente pode não perceber, mas todo mundo muda e muda o tempo todo.  

E isso inclui até a Gazeta do Povo.


a chuva que transporta

Da janela do quartinho vejo a chuva que se aproxima. Chumbo no céu, muito verde balançando no vizinho e um cheiro de infância.
Gosto quando as nuvens desabam. Não deve demorar muito para acontecer.

Daqui, espio a natureza se transformando e imagino rios correndo furiosos, a serra do mar em rodopio, a areia da praia furada pelos pingos.

Fujo desse planalto e fico em outro nível, a lembrar de quando era pequena e vi tempestade no mar. Raios, águas doces e salgadas em agastada mistura, vendaval. Não lembro quantos anos tinha, mas sei bem que fiquei muito impressionada. Era verão e todo aquele movimento não acalmava o calor. Era Santa Catarina e a reunião de céu, terra e mar não nos tirava o sotaque “gente!, que chuvarada!”. Era dia e todas as luzes estavam acesas.

As palmeiras penteadas pro lado do continente, avenidas no curso das águas, o comércio fechado. Lembro de um rapaz carregando um poste de algodão doce na prancha de isopor que flutuava guerreira pela correnteza da rua e meu não entendimento sobre o porquê de salvar a mercadoria assim, se ela não serviria mais para o consumo tanto que chovia em cima.

A chuva me afastava da brincadeira na praia, mas atiçava meu pensamento e eu navegava por outros lugares e me imaginava Noé, Poseidon, Zeus, Fred Astaire.
Me via dona absoluta de aventuras incríveis, críveis.


Eu ainda era menina e a chuva já me levava para outros lugares...