terça-feira, 22 de abril de 2014

posta-restante



Eu sou do tipo que ainda escreve cartas. Gosto de me comunicar assim. Desde sempre.

As vezes esqueço de enviá-las, as vezes transformo-as em email e as vezes as deixo aqui, quietas, caladas: eu remetente e destinatário.

Elas são muitas e escritas quase que diariamente. Antigos amores, amigos distantes, família espalhada. Escrevo para poder continuar dentro de mim mesma sem enlouquecer com a solidão. Escrevo porque tenho coisas a dizer. Escrevo porque é a única forma de continuar.
Minhas cartas são os bonecos de neve que construo da matéria que ainda continua em volta. São o salto na piscina que espalha a água que não acaba. São as notícias de um jornal: amanhã existirão outras, sempre existirão outras e continuarão, mesmo sem novidades.

A saudade é o tema que elas mais visitam. Mas também falam de perdão, de confiança, de amor, de música, do cachorro, da máquina de lavar. Contam de noites de sol, do réveillon, dos dias santos e dos planos do futuro. Levam notícias das férias, do trabalho novo, da receita testada, do vizinho bonito do outro lado da rua.

Em dias de clareza com a vida e os sentimentos, escrevo pra mim mesma com o aviso para serem lidas daqui cinco, dez, até 20 anos, para que lá na frente eu receba as novidades do meu passado. Fico contente quando o carteiro chama com uma carta pra mim, mesmo que seja eu a ocupar todos os lados da linha.

Tenho pilhas e pilhas de cartas aqui. E uma preguiça do tamanho do mundo de tomar as providências cabíveis: correio, lixo, fogueira.
Elas vão ficando, a tomar espaço e a se espalhar em gavetas, armários e bolsas. Objetos identificados e endereçados. Mensagens de amor que não podem esperar, o amor nunca pode esperar!, mas ficam aqui, em silêncio, aguardando a pátina do tempo, amareladas. Quem sabe um dia?

Neurose que me cura, me adoece, me mantém viva e em contato, nem que seja comigo mesma. Porque nem tudo está perdido, assim, eu entrego meu coração.




quinta-feira, 17 de abril de 2014

yo no vengo a decir un discurso



Ainda menina queria ser Gabriel Garcia Marquez quando crescesse. Não tinha propósito com a escrita, mas buscava um jeito de me aventurar em histórias bem contadas, tiradas de vida rica, olhar atento e devaneios por decisão.

Fui conhecendo-o aos poucos e me apaixonando na medida. Teve uma época que renunciei a todo pretendente porque bordava-o na cabeça minha metade – sonhava, arquitetava planos, planejava viagens, decorava no espelho falas completas.
Eu amei Marquez e no dia em que li no jornal uma gracinha dele pra cima da Shakira, o odiei com o ciúme mais doentio e maluco que se tem. Perdoei. Porque cabia a mim dar o passo para reconciliação.
Brigava sempre que ele visitava Fidel e falava aquelas besteiras. Soube relevar, porque até o mais inteligente dos homens tem direito às próprias bobagens.  
Ah! tive os tormentos noturnos, as vontades de Cartagena, Paris, México, o desejo de persegui-lo e guiá-lo. Quanto charme, quanto saber do humano, quanta percepção...  

Ele me convenceu com suas pretinhas deitadas no branco que o melhor do mundo está no papel e a maior de todas as artes é dominar a linguagem, quem tem esse poder convence qualquer um das mais impossíveis histórias. 
Fui Firmina Daza com cabeleira de Sierva Maria Todos los Ángeles, caminhei por Macondo, experimentei gelo, virei Buendia, escrevi ao coronel, odiei Angela Vicário e sua dupla de irmãos. Vivi mil histórias, sempre de mãos dadas com ele, homem que me foi prometido e nunca entregue.  

Agora, meus olhos arregalados me dizem que acumulo cem anos de solidão. A história de toda a  humanidade louca de Marquez está aqui dentro, comigo, a fazer barulho de velório.

Meu grande companheiro dessa vida foi embora – realismo. Viverá para sempre em meus pensamentos e minhas vontades e todas as vezes em que abrir um livro e sentir aquele cheiro ele se materializará de volta pra mim, fantástico.   


segunda-feira, 7 de abril de 2014

um pouco encantado, um pouco real



Existe, está no mapa, tem rádio, prefeito, igreja, bordel, escola, restaurante. Tem ruas, praça, calçada e até semáforo – um só, mas está lá: atenção, pare, siga. Tem lojas, farmácia, peixaria e mercado. Tem música, lendas, apelidos e carnaval. Tem água, barcos, porto, trilhos, árvores e flores.
Tudo muito tátil, muito ao alcance das mãos, dos olhos. Mas a léguas do entendimento possível em outros sítios.

Há um ritmo. E ele acaba por ditar tudo aquilo que não se explica. No compasso de seus ventos, de sua gente, de seu comércio, de seus sinos a vida se instala e mostra quais são os intervalos entre uma atividade e outra.

O primeiro galo canta ainda quando o dia não rompeu. Mas esse galo não mora lá, ele canta a 80 quilômetros de distância, o som de seu cacarejo viaja devagar, desce ladeiras, escorrega caminhos, quebra veredas, banha-se em rios, faz arruaça pelas vizinhanças e quando chega na cidade para acordar os pares, o relógio marca nove horas da manhã. Lá os galos se acordam e acordam os outros a partir das nove da matina, madrugada. É quando o dia começa, quando o primeiro cachorro se espreguiça, quando as flores do dia se abrem e os passarinhos saem dos ninhos.
As nove da manhã o primeiro homem, acordado pelo primeiro galo local, corta a primeira lenha para o primeiro café. O sol começa a subir. E sua primeira xícara desce preguiçosa, chacoalha o metabolismo em câmera lenta para que o trabalho comece: olhos na baía, coceira pelo corpo dormente, preguiça.

Os cachorros se arrastam pelo caminho para atravessar a rua e achar o ponto de parada e soneca do dia. Os passarinhos vêm, cantam devagar, nota por nota, pios vadios, sem alvoroço.

Todo o trabalho dos homens, das mulheres, do comércio, das casas, em todos os lugares e a qualquer tempo é slow, vagaroso, moroso. Uns chamam de preguiça outros de vida besta mas eles não têm urgências – o grande acontecimento é a morte e ninguém se precipita pra ela.

A igreja, a música e a televisão emburrecem. A natureza faz contra-ponto e como ela também procrastina, ensina a viver como os galos, como o sol, como a passarinhada e mantém um povo inteirinho dia após dia, chuva após chuva em cadência sem horizonte, sem motor, sem progresso.

A pressa não existe, Inês já é morta, a vida segue de qualquer maneira e amanhã o canto do galo viajará como luz de estrela que não existe mais para recomeçar o dia, reabrir as janelas e continuar o eterno domingo.


rivotril em 3, 2, 1...



Eu queria fechar os olhos e ir. Rodar feito João Gilberto na direção do Monza. Deixar cair prum lado e outro, vela na brisa.

Corpo solto no mar, estendido de norte a sul, mãos leste a oeste.

Leveza de gaivota, pensamentos soltos, pés descalços.

Queria mais, queria ser pluma no gesto, palavra e ação. Queria ter a beleza etérea das bailarinas a hipnotizar no primeiro olhar.

Como seria bom flutuar por aí, passear de sítio em sítio e ser confundida com miragem, fantasma, sereia. Ilusão que se materializaria com voz suave. Quem me olhasse acharia que eu, suspensa, dominava a gravidade e fazia de todos os lugares a minha lua particular.

Assim, suave, branda, calma talvez me fosse permitido adormecer.


A insônia me provoca, me maltrata, me pinta o rosto.


Ela apura os sentidos: audição de morcego, biossonar, a captar qualquer decibel da rua, da madeira da casa estalando, de um carro a quadras de distância; visão de rapina, que enxerga longe, de felina, que desvenda formas no escuro, pupilas dilatas; olfato de perdigueiro, alguém fumando no andar de baixo, pétalas florescendo na praça da esquina, o vidro de perfume aberto. Fico à flor da pele, calor, frio, arrepio... 
Tudo em escala.

Não dormir é como aquelas drogas inglesas que se vendem com a promessa de ativar tudo. É estar entorpecida ao contrário, no antônimo. É o corpo a gritar na calada, é abrir os olhos para o escuro.

Não dormir é uma praga que revira a alma, causa dependência e estraga a noite, que é o melhor do dia.    
   


quinta-feira, 3 de abril de 2014

amor, meu grande amor, não chegue na hora marcada...



Dos serviços que pioraram muito na última década, os emprestados pelos Correios estão lá a figurar incompetência e atormentar a gente.

Atenção, companheiro, acompanhe o caso: a encomenda foi postada em São Paulo, aqui do ladinho, estado vizinho, coisa pouca de distância, no remoto dia 24 do mês passado.
Lembra o que você estava fazendo às 13:19 do dia 24 de março? Não, nem eu, já faz tanto tempo... Pois minha encomenda começou sua viagem nesse horário, naquele dia. Eu não gosto nem de imaginar por quanta coisa ela tem passado nesse período – mãos descuidadas, solavancos, todo tipo de intempéries e riscos...

Não sei porque cargas d’água o lance não chega aqui! A incompetência do serviço promove a picaretagem institucionalizada: como não assumem a inabilidade, eles a justificam como “motivos operacionais”. Ora bolas!, motivos operacionais, o que é isso, companheiro?
Acompanho pelo site o caminho do meu pacote. Desde segunda-feira a rodar pela cidade sem chegar à minha casa por “motivos operacionais”. Como a explicação não esclarece o que aconteceu, o Correio não fala comigo por telefone sobre o caso e pessoalmente ninguém sabe explicar, eu fico a tentar adivinhar as causas e a torcer para que elas se solucionem, sejam quais forem.

E tudo que ofereço é meu calor, meu endereço? Não. Não mesmo! Paguei direitinho. Adiantado, o que eles me pediram, sem negociação.

Pô, companheiros!? Até os Correios? Até lá onde tudo dava certo? Pô!